domingo, 8 de julho de 2012

Caso do Vestido - Carlos Drummond de Andrade


Adoro esse poema!!!


Nossa mãe, o que é aquele
vestido, naquele prego?

Minhas filhas, é o vestido
de uma dona que passou.

Passou quando, nossa mãe?
Era nossa conhecida?

Minhas filhas, boca presa.
Vosso pai evém chegando.

Nossa mãe, dizei depressa
que vestido é esse vestido.

Minhas filhas, mas o corpo
ficou frio e não o veste.

O vestido, nesse prego,
está morto, sossegado.

Nossa mãe, esse vestido
tanta renda, esse segredo!

Minhas filhas, escutai
palavras de minha boca.

Era uma dona de longe,
vosso pai enamorou-se.

E ficou tão transtornado,
se perdeu tanto de nós, 

se afastou de toda vida,
se fechou, se devorou,

chorou no prato de carne,
bebeu, brigou, me bateu,

me deixou com vosso berço,
foi para a dona de longe,

mas a dona não ligou.
Em vão o pai implorou.

Dava apólice, fazenda,
dava carro, dava ouro,

beberia seu sobejo,
lamberia seu sapato.

Mas a dona nem ligou.
Então vosso pai, irado,

me pediu que lhe pedisse,
a essa dona tão perversa,

que tivesse paciência
e fosse dormir com ele...

Nossa mãe, por que chorais?
Nosso lenço vos cedemos.

Minhas filhas, vosso pai
chega ao pátio.  Disfarcemos.

Nossa mãe, não escutamos
pisar de pé no degrau.

Minhas filhas, procurei
aquela mulher do demo.

E lhe roguei que aplacasse
de meu marido a vontade.

Eu não amo teu marido,
me falou ela se rindo.

Mas posso ficar com ele
se a senhora fizer gosto,

só pra lhe satisfazer,
não por mim, não quero homem.

Olhei para vosso pai,
os olhos dele pediam.

Olhei para a dona ruim,
os olhos dela gozavam.

O seu vestido de renda,
de colo mui devassado, 

mais mostrava que escondia
as partes da pecadora.

Eu fiz meu pelo-sinal,
me curvei... disse que sim.

Sai pensando na morte,
mas a morte não chegava.

Andei pelas cinco ruas,
passei ponte, passei rio, 

visitei vossos parentes,
não comia, não falava,

tive uma febre terçã,
mas a morte não chegava.

Fiquei fora de perigo,
fiquei de cabeça branca,

perdi meus dentes, meus olhos,
costurei, lavei, fiz doce,

minhas mãos se escalavraram,
meus anéis se dispersaram,

minha corrente de ouro
pagou conta de farmácia.

Vosso pais sumiu no mundo.
O mundo é grande e pequeno.

Um dia a dona soberba
me aparece já sem nada,

pobre, desfeita, mofina,
com sua trouxa na mão.

Dona, me disse baixinho,
não te dou vosso marido,

que não sei onde ele anda.
Mas te dou este vestido, 

última peça de luxo
que guardei como lembrança

daquele dia de cobra,
da maior humilhação.

Eu não tinha amor por ele,
ao depois amor pegou.

Mas então ele enjoado
confessou que só gostava

de mim como eu era dantes.
Me joguei a suas plantas,

fiz toda sorte de dengo,
no chão rocei minha cara,

me puxei pelos cabelos,
me lancei na correnteza,

me cortei de canivete,
me atirei no sumidouro,

bebi fel e gasolina,
rezei duzentas novenas,

dona, de nada valeu:
vosso marido sumiu.

Aqui trago minha roupa
que recorda meu malfeito

de ofender dona casada
pisando no seu orgulho.

Recebei esse vestido
e me dai vosso perdão.

Olhei para a cara dela,
quede os olhos cintilantes?

quede graça de sorriso,
quede colo de camélia?

quede aquela cinturinha
delgada como jeitosa?

quede pezinhos calçados
com sandálias de cetim?

Olhei muito para ela,
boca não disse palavra.

Peguei o vestido, pus
nesse prego da parede.

Ela se foi de mansinho
e já na ponta da estrada

vosso pai aparecia.
Olhou pra mim em silêncio,

mal reparou no vestido
e disse apenas: — Mulher,

põe mais um prato na mesa.
Eu fiz, ele se assentou,

comeu, limpou o suor,
era sempre o mesmo homem,

comia meio de lado
e nem estava mais velho.

O barulho da comida
na boca, me acalentava,

me dava uma grande paz,
um sentimento esquisito

de que tudo foi um sonho,
vestido não há... nem nada.

Minhas filhas, eis que ouço
vosso pai subindo a escada.
 
Texto extraído do livro "
Nova Reunião - 19 Livros de Poesia", José Olympio Editora - 1985, pág. 157.

sábado, 30 de junho de 2012

Cilada verbal - Afonso Romano de Santana



Há vários modos de
matar um homem:
com o tiro, a fome
a espada
ou com a palavra
- envenenada.
Não é preciso força.
Basta que a boca solte
a frase engatilhada
e o outro morre
- na sintaxe da
emboscada.

terça-feira, 26 de junho de 2012

POEMARGENS: Fernando Pessoa

POEMARGENS: Fernando Pessoa: A Minha Vida é um Barco Abandonado A minha vida é um barco abandonado Infiel, no ermo porto, ...

sábado, 26 de maio de 2012

CONTEÚDO LIVRE: Tarefa do pensamento - João Paulo‏

Tenho uma grande admiração por esse pensador brasileiro. 


CONTEÚDO LIVRE: Tarefa do pensamento - João Paulo‏: Dez anos da morte do pensador Henrique Cláudio de Lima Vaz são lembrados com lançamento de livros inéditos e de coleção dedicada ao filósofo...

CONTEÚDO LIVRE: ENTREVISTA/ ANA MARIA MACHADO - Ana Clara Brant‏

Muito boa essa entrevista da escritora Ana Maria Machado

CONTEÚDO LIVRE: ENTREVISTA/ ANA MARIA MACHADO - Ana Clara Brant‏: Amor à leitura   Escritora com mais de 100 livros publicados fala dos projetos à frente da Academia Brasileira de Letras     Ana Clara B...

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Para Maria da Graça - Paulo Mendes Campos

Essa crônica é simplesmente maravilhosa!!!

Agora que chegaste à idade avançada de 15 anos, Maria da Graça, eu te dou este livro: Alice no país das Maravilhas.
Este livro é doido, Maria. Isto é: o sentido dele está em ti.
Escuta: se não descobrires um sentido na loucura acabarás louca. Aprende, pois, logo de saída para a grande vida, a ler este livro como um simples manual do sentido evidente de todas as coisas, inclusive as loucas. Aprende isso a teu modo, pois te dou apenas umas poucas chaves entre milhares que abrem as portas da realidade.
A realidade, Maria, é louca.
Nem o Papa, ninguém no mundo, pode responder sem pestanejar à pergunta que Alice faz à gatinha: “Fala a verdade, Dinah, já comeste um morcego?”.
Não te espantes quando o mundo amanhecer irreconhecível. Para melhor ou pior, isso acontece muitas vezes por ano. “Quem sou eu no mundo?” Essa indagação perplexa é o lugar comum de cada história de gente. Quantas vezes mais decifrares essa charada, tão entranhada em ti mesma como os teus ossos, mais forte ficarás.
Não importa qual seja a resposta; o importante é dar ou inventar uma resposta. Ainda que seja mentira.
A sozinhez (esquece essa palavra que inventei agora sem querer) é inevitável.
Foi o que Alice falou no fundo do poço: “Estou tão cansada de estar aqui sozinha!” O importante é que ela conseguiu sair de lá, abrindo a porta. A porta do poço! Só as criaturas humanas (nem mesmo os grandes macacos e os cães amestrados) conseguem abrir uma porta bem fechada, e vice-versa, isto é, fechar uma porta bem aberta.
Somos todos bobos, Maria. Praticamos uma ação trivial, e temos a presunção petulante de esperar dela grandes consequências. Quando Alice comeu o bolo, e não cresceu de tamanho, ficou no maior dos espantos. Apesar de ser isso o que acontece, geralmente, às pessoas que comem bolo.
Maria, há uma sabedoria social ou de bolso; nem toda sabedoria tem de ser grave.
A gente vive errando em relação ao próximo e o jeito é pedir desculpas sete vezes por dia: “Oh, I beg your pardon!” Pois viver é falar de corda em casa de enforcado. Por isso te digo, para a tua sabedoria de bolso: se gostas de gato, experimenta o ponto de vista do rato.
Foi o que o rato perguntou à Alice: “Gostarias de gatos se fosses eu? “.
Os homens vivem apostando corrida, Maria. Nos escritórios, nos negócios, na política nacional e internacional, nos clubes, nos bares, nas artes, na literatura, até amigos, até irmãos, até marido e mulher, até namoradas, todos vivem apostando corrida. São competições tão confusas, tão cheias de truques, tão desnecessárias, tão fingindo que não é, tão ridículas muitas vezes, por caminhos tão escondidos que, quando os atletas chegam exaustos a um ponto, costumam perguntar: “A corrida terminou! Mas quem ganhou?” É bobice, Maria da Graça, disputar uma corrida se a gente não irá saber quem venceu. Se tiveres de ir a algum lugar, não te preocupe a vaidade fatigante de ser a primeira a chegar. Se chegares sempre aonde quiseres, ganhastes.
Disse o ratinho: “Minha história é longa e triste!” Ouvirás isso milhares de vezes.
Como ouvirás a terrível variante: “Minha vida daria um romance”. Ora, como todas as vidas vividas até o fim são longas e tristes, e como todas as vidas dariam romances, pois o romance é só o jeito de contar uma vida, foge, polida mas energicamente, dos homens e das mulheres que suspiram e dizem: “Minha vida daria um romance!” Sobretudo dos homens. Uns chatos irremediáveis, Maria.
Os milagres sempre acontecem na vida de cada um e na vida de todos. Mas, ao contrário do que se pensa, os melhores e mais fundos milagres não acontecem de repente, mais devagar, muito devagar. Quero dizer seguinte: a palavra depressão cairá de moda mais cedo ou mais tarde. Como talvez seja mais tarde, prepara-te para a visita do monstro, e não te desesperes ao triste pensamento de Alice: “Devo estar diminuindo de novo”. Em algum lugar há cogumelos que nos fazem crescer novamente.
E escuta esta parábola perfeita: Alice tinha diminuído tanto de tamanho que tomou um camundongo por um hipopótamo. Isso acontece muito, Mariazinha. Mas não sejamos ingênuos, pois o contrário também acontece. E é um outro escritor inglês que nos fala mais ou menos assim: o camundongo que expulsamos ontem passou a ser hoje um terrível rinoceronte: É isso mesmo. A alma da gente é uma máquina complicada que produz durante a vida uma quantidade imensa de camundongos que parecem hipopótamos e de rinocerontes que parecem camundongos. O jeito é rir no caso da primeira confusão e ficar bem disposto para enfrentar o rinoceronte que entrou em nossos domínios disfarçado de camundongo. E como tomar o pequeno por grande e o grande por pequeno é sempre meio cômico, nunca devemos perder o bom humor.
Toda pessoa deve ter três caixas para guardar humor: uma caixa grande para humor mais ou menos barato que a gente gasta na rua com os outros; uma caixa média para humor que a gente precisa ter quando está sozinho, para perdoares a ti mesma, para rires de ti mesma; por fim, uma caixinha preciosa, muito escondida, para as grandes ocasiões. Chamo de grandes ocasiões os momentos perigosos em que estamos cheios de dor ou de vaidade, em que sofremos a tentação de achar que fracassamos ou triunfamos, em que nos sentimos umas drogas ou muito bacanas.
Cuidado, Maria, com as grandes ocasiões.
Por fim, mais uma palavra de bolso: às vezes uma pessoa se abandona de tal forma ao sofrimento, com uma tal complacência, que tem medo de não poder sair de lá. A dor também tem o seu feitiço, e este se vira contra o enfeitiçado. Por isso Alice, depois de ter chorado um lago, pensava: “Agora serei castigada, afogando-me em minhas próprias lágrimas”.
Conclusão: a própria dor deve ter a sua medida: É feio, é imodesto, é vão, é perigoso ultrapassar a fronteira de nossa dor, Maria da Graça.
(Do livro “O Colunista do Morro”, 1965).

segunda-feira, 21 de maio de 2012

domingo, 20 de maio de 2012

MOINHO DE SONHOS


Texto belíssimo!!! Confiram!!! Adoro os contos João Anzanello Carrascoza

A mulher e o menino iam montados no cavalo; o homem ia ao lado, a pé. Andavam sem rumo havia semanas, até que deram numa aldeia à beira de um rio, onde as oliveiras vicejavam.
Fizeram uma pausa e, como a gente ali era hospitaleira e a oferta de serviço abundante, resolveram ficar. O homem arranjou emprego num moinho próximo à aldeia. A mulher se juntou a outras que colhiam azeitonas em terras ao redor de um castelo. Levou consigo o menino que, no meio do caminho, achou um velho cabo de vassoura e fez dele o seu cavalo. Deu-lhe o nome de Rocinante. 
Ao chegar aos olivais, o pequeno encontrou o filho de outra colhedeira - um garoto que se exibia com um escudo e uma espada de pau.
Os dois se observaram à distância. Cada um se manteve junto à sua mãe, sem saber como se libertar dela. Vigiavam-se. Era preciso coragem para se acercar. Mas meninos são assim: se há abismos, inventam pontes.
De súbito, estavam frente a frente. Puseram-se a conversar, embora um e outro continuassem na sua. Logo esse já sabia o nome daquele: o menino recém-chegado se chamava Alonso; o outro, Sancho. 
Começaram a se misturar:
 - Deixa eu brincar com seu cavalo?, pediu Sancho. 
- Só se você me emprestar sua espada, respondeu Alonso. 
Iam se entendendo, apesar de assustados com a felicidade da nova companhia.
Avançaram na entrega:
- Tá vendo aquele moinho gigante?, apontou Alonso. Meu pai sozinho é que faz ele girar.
- Seu pai deve ter braços enormes, disse Sancho. 
- Tem! Mas nem precisava, respondeu Alonso. Ele move o moinho com um sopro. 
Sancho achou graça. Também tinha uma proeza a contar:
- Tá vendo o castelo ali?, apontou. Meu pai disse que o dono tem tanta terra que o céu não dá para cobrir ela toda.
- E se a gente esticasse o céu como uma lona e cobrisse o que está faltando?, propôs Alonso.
- Seria legal, disse Sancho. Mas ia dar um trabalhão. 
Temos de crescer primeiro. 
Bom, enquanto a gente cresce, vamos pensar num jeito de subir até o céu! - disse Alonso.
- Vamos!, concordou Sancho.
Sentaram-se na relva. O cavalo, a espada e o escudo entre os dois. Um sopro de vento passou por eles.
Já eram amigos: moviam juntos o mesmo sonho.
João Anzanello Carrascoza
Disponível em: http://revistaescola.abril.com.br Acesso em: 20.01.2012



domingo, 6 de maio de 2012

Imagem de leitura

É muito linda essa imagem!!!

quarta-feira, 2 de maio de 2012

O caso do espelho

Este conto é simplesmente maravilhoso!!!!!! Já faz algum tempo que o conheço. Todas as vezes que o leio me divirto bastante! A ilustração ficou sensacional!!!



Era um homem que não sabia quase nada. Morava longe, numa casinha de sapé esquecida nos cafundós da mata. 
Um dia, precisando ir à cidade, passou em frente a uma loja e viu um espelho pendurado do lado de fora. O homem abriu a boca. Apertou os olhos. Depois gritou, com o espelho nas mãos: 
- Mas o que é que o retrato de meu pai está fazendo aqui?
- Isso é um espelho - explicou o dono da loja. 

- Não sei se é espelho ou se não é, só sei que é o retrato do meu pai. 

Os olhos do homem ficaram molhados. 
- O senhor... conheceu meu pai? - perguntou ele ao comerciante. 
O dono da loja sorriu. Explicou de novo. Aquilo era só um espelho comum, desses de vidro e moldura de madeira. 
- É não! - respondeu o outro. - Isso é o retrato do meu pai. É ele, sim! Olha o rosto dele. Olha a testa. E o cabelo? E o nariz? E aquele sorriso meio sem jeito? 
O homem quis saber o preço. O comerciante sacudiu os ombros e vendeu o espelho, baratinho. 
Naquele dia, o homem que não sabia quase nada entrou em casa todo contente. Guardou, cuidadoso, o espelho embrulhado na gaveta da penteadeira. 
A mulher ficou só olhando. 
No outro dia, esperou o marido sair para trabalhar e correu para o quarto. Abrindo a gaveta da penteadeira, desembrulhou o espelho, olhou e deu um passo atrás. Fez o sinal da cruz tapando a boca com as mãos. Em seguida, guardou o espelho na gaveta e saiu chorando. 
- Ah, meu Deus! - gritava ela desnorteada. - É o retrato de outra mulher! Meu marido não gosta mais de mim! A outra é linda demais! Que olhos bonitos! Que cabeleira solta! Que pele macia! A diaba é mil vezes mais bonita e mais moça do que eu! 
- Quando o homem voltou, no fim do dia, achou a casa toda desarrumada. A mulher, chorando sentada no chão, não tinha feito nem a comida. 
- Que foi isso, mulher? 
- Ah, seu traidor de uma figa! Quem é aquela jararaca lá no retrato? 
- Que retrato? - perguntou o marido, surpreso. 
- Aquele mesmo que você escondeu na gaveta da penteadeira! 
O homem não estava entendendo nada. 
- Mas aquilo é o retrato do meu pai! Indignada, a mulher colocou as mãos no peito: 
- Cachorro sem-vergonha, miserável! Pensa que eu não sei a diferença entre um velho lazarento e uma jabiraca safada e horrorosa? 
A discussão fervia feito água na chaleira. 
- Velho lazarento coisa nenhuma! - gritou o homem, ofendido. 
A mãe da moça morava perto, escutou a gritaria e veio ver o que estava acontecendo. Encontrou a filha chorando feito criança que se perdeu e não consegue mais voltar pra casa. 
- Que é isso, menina? 
- Aquele cafajeste arranjou outra! 
- Ela ficou maluca - berrou o homem, de cara amarrada. 
- Ontem eu vi ele escondendo um pacote na gaveta lá do quarto, mãe! Hoje, depois que ele saiu, fui ver o que era. Tá lá! É o retrato de outra mulher! 
A boa senhora resolveu, ela mesma, verificar o tal retrato. 
Entrando no quarto, abriu a gaveta, desembrulhou o pacote e espiou. Arregalou os olhos. Olhou de novo. Soltou uma sonora gargalhada. 
- Só se for o retrato da bisavó dele! A tal fulana é a coisa mais enrugada, feia, velha, cacarenta, murcha, arruinada, desengonçada, capenga, careca, caduca, torta e desdentada que eu já vi até hoje!
E completou, feliz, abraçando a filha: 
- Fica tranqüila. A bruaca do retrato já está com os dois pés na cova!

Conto popular recontado por Ricardo Azevedo, ilustrado por Alarcão
Fonte: http://revistaescola.abril.com.br/fundamental-1/caso-espelho-634284.shtml

Dona Licinha


Sou apaixonada por esse conto de Fanny Abramovich

A senhora não me conhece. Faz tanto tempo e me lembro de detalhes do seu jeito, sua voz, seu penteado e roupas... A senhora ensinava na 3a série B e eu era aluna da 3a série C no Grupo Escolar do Tatuapé... Passava no corredor fazendo figa para mudar de classe, pra minha professora viajar e nunca mais voltar, pra diretora implicar e me mandar pra 3a B... Nunca tive tanta inveja na minha vida como tive das crianças da série B... 

Lembro que na sua sala se ouviam risadas quase o tempo todo. Maior gostosura! De vez em quando, um enorme silêncio quebrado por uma voz suave... era hora de contar histórias. Suspirando, eu grudava na janela e escutava o que podia... Também muitos piques e hurras, brincadeiras correndo solto. Esconde-esconde, telefone-sem-fio, campeonato de Geografia. Tanto fazia a aprontação inventada. Importava era sentir a redonda contenteza dos alunos. 

A sua sala era colorida com desenhos das crianças, um painel com recortes de revistas e jornais, figurinhas bailando em fios pendurados, mapas e fotos... Uma lindeza rodopiante mudada toda semana! Vi pela janela seus alunos fantasiados, pintados, emperucados, representando cenas da História do Brasil! Maior maravilhamento! Demorei, entendi. Quem nunca entendeu foi a minha professora... Seu segredo era ensinar brincando. Na descoberta! Na contenteza! 

Nunca ouvi berros, um "cala boca", "aqui quem manda sou eu" e outras mansidões que a minha professora dizia sem cansar. Não escutei ameaças de provas de supetão, castigos, dobro da lição de casa, chamar a diretora, com que a minha professora me aterrorizava o tempo todo... 

Dona Licinha, eu quis tanto ser sua aluna quando fiz a 3a série. Não fui... Hoje, tanto tempo depois, sou professora. Também duma 3a série. Agora sou sua colega... Só não esqueço que queria estar na sua classe, seguir suas aulas risonhas, sem cobranças, sem chateações, sem forçar barras, sem fazer engolir o desinteressante. Numa sala colorida, iluminada, bailante. Também quero ser uma professora assim. Do seu jeito abraçante. 

Hoje, vi uma garotinha me espiando pela janela. Arrepiei. Senti que estava chegando num jeito legal de estar numa sala de aula... Por isso resolvi escrever para a senhora. Vontadona engolida por décadas. Tinha que dizer que continuo querendo muito ser aluna da dona Licinha. Agora, aluna de como ser professora. Fazendo meus alunos viverem surpresas inventivas. 

Um abraço apertado, cheinho de gostosuras, da Ciça

Conto de Fanny Abramovich, ilustrado por Carlo Giovani. Foto de Leo Feltran

segunda-feira, 30 de abril de 2012

Imagem de leitura

A leitura traz ao homem plenitude, o discurso segurança e a escrita exactidão.
Francis Bacon


domingo, 29 de abril de 2012


Muito bom esse texto sobre leitura e qualidade do ensino. Recomendo a leitura


Leitura e qualidade do ensino
Um itinerário possível para a formação de leitores

Por María Beatriz Medina
María Beatriz Medina nasceu na Venezuela. Formada em letras, autora, mediadora, pesquisadora na área de leitura y literatura infantil, professora, e consultora. Atualmente participa da Comissão Executiva do Banco del Libro, é presidente da filial venezuelana do IBBY e membro do Conselho de Sinergia, uma rede de associações da sociedade civil venezuelana.

Quando recebi o convite para refletir sobre leitura e qualidade de ensino, me posicionei a partir do ponto de vista de meu trabalho como promotora de leitura. E desse lugar me aproximei do tema, agradecendo o convite, pois tais reflexões nos permitem tomar distância e pensar sobre o que fazemos e como fazemos.
O engate inicial com essa temática começou a se delinear a partir do que já trazíamos dentro dos alforjes, como mediadores preocupados em formar um sujeito leitor independente, crítico e cidadão responsável. Isto é, o desideratum implícito – ainda que no discurso – presente em todos os espaços de promoção de leitura e, principalmente, na escola.

Parecia fácil. Comecei fazendo um balanço das possibilidades que a leitura oferece por e para a formação, mas no caminho comecei a perceber – uma vez mais – que aproximar-se da leitura e do trabalho de formar leitores é uma tarefa árdua, se avaliada pelas dimensões da busca e pelo fio da evolução de um conceito sempre em reformulação.

 I. Do que estamos falando quando falamos em leitura?
Não podemos dizer que compartilhamos do mesmo conceito de leitura revisto e transformado por motivações ideológicas e pedagógicas e matizado por contribuições de concepções sociolinguísticas e socioculturais de diferentes naturezas. Hoje em dia, inclusive, se cai muitas vezes no erro de considerar que ler é simplesmente a habilidade de decifrar signos, quando o ato de ler vai muito além deste deciframento.

A leitura é acumulativa e propõe sempre um diálogo entre o leitor e os códigos verbais e não verbais, que se transforma em um espaço de elaboração e de construção de um ser social e individual. A leitura é, antes de tudo, um ato comunicacional e – por isso – uma prática social que entrelaça o texto escrito e o uso da linguagem. Quando nos aproximamos com atenção da prática leitora, ou do uso da leitura dos textos escritos, podemos percebê-la como uma prática social vital, situada na interação pessoal.

David Barton e Mary Hamilton, no texto “La literacidad entendida como práctica social”, consideram que a leitura é capaz de “dar sentido às vidas por meio das práticas cotidianas”.

Não se trata de uma referência casual, pois aqueles que como eu trabalham em projetos de promoção de leitura podem constatar que a leitura dá sentido à vida, não apenas nas práticas cotidianas, mas em situações difíceis, em que a ficção ou a metáfora se transformam em ferramentas de exceção “para ler o entorno e interpretar a realidade”. Por isso é necessário formar leitores como habitantes do mundo, parafraseando Daniel Goldin.

Mas a leitura funciona também como uma estratégia para o ensino, ainda que tenhamos que evitar o perigo de cair no reducionismo instrumental ao considerá-la apenas uma ferramenta para o desenvolvimento de competências que se identificam com a compreensão das estruturas lógicas para apreender de qualquer maneira um texto proposto.

 II. Para que formar leitores?
O tema da formação de leitores está relacionado ao tipo de cidadão que queremos. Sem sombra de dúvidas, aspiramos a um leitor crítico, capaz de se posicionar no mundo, um leitor que transcenda o mero deciframento e seja capaz de abordar a leitura informativa e estética, enfrentando o texto, questionando-o, sentindo-o.

A palavra escrita e a leitura nos ajudam a criar espaços para o desenvolvimento e a transformação individual e social, uma vez que a experiência estética abarca a vastidão de nossa contraditória condição humana e estabelece pontes com a realidade na qual estamos submersos. Ela faz isto, claro está, de maneira metafórica e abstrata, para possibilitar o desenvolvimento do ser social.

III. Quem é o responsável pela formação de leitores?
O Estado, sem dúvida. Ele é o centro decisivo na hora da formulação, orientação e coordenação das políticas públicas de leitura. Formar leitores exige o compromisso do Estado e uma sólida articulação de distintas esferas da vida social: em primeiro lugar a escola, a biblioteca, as organizações sociais que trabalham com a leitura e a indústria do livro.

A formação de leitores, cabe frisar, é uma pratica ancorada em solidas premissas sobre a leitura, tais como:
Constitui-se num elemento inevitável na hora de educar para a vida democrática e participativa.
É um espaço para a formação do cidadão responsável.
Transforma-se na “ferramenta” do desenvolvimento de seres autônomos e críticos.
É uma bússola que orienta no campo da informação e leva ao conhecimento.

Somos obrigados a levar em conta as necessidades do contexto. Pois é justamente quando o contexto se faz presente, o momento em que começam a sucumbir as certezas destas e de outras premissas; isto porque a prática nos demonstra a saciedade da condição modificadora da realidade.

 Como aponta Anne-Marie Chartier, ao longo do tempo a urgência de educar respondeu a um desafio social urgente (salvar sua alma, construir a República, inserir-se no mundo do trabalho). Hoje a urgência se articula em torno da formação de cidadãos.

III. Voltando ao tema que nos interessa: Leitura e qualidade do ensino.
Em uma primeira aproximação, vemos uma equação direta que deveria nos levar a fechar questões acerca do trabalho contínuo e sustentado de formação de leitores em todos os espaços que assumem esta tarefa. Obviamente, a escola não é uma exceção.

No entanto, para que essa equação se faça realidade, é necessário assumir a leitura como um elemento vital de desenvolvimento humano e promover, ao mesmo tempo, a internacionalização de uma verdadeira valorização dessa prática.

É tarefa dos docentes articular caminhos que deixem inequívoca a condição essencial da leitura para o ser humano e abram as comportas para a multiplicidade de possibilidades que oferece ao leitor como ferramenta para a comunicação e a experiência docentes.

 IV. Como conseguir isso na prática?
1. Em primeiro lugar, repetirei uma máxima: criando dentro da escola espaços e tempos de leitura de uma grande variedade de textos. Isto é, propiciando em espaços leitores e bibliotecas escolares o encontro com textos de diferentes formatos, alinhados com os objetivos escolares e assumindo a leitura como condição essencial para o desenvolvimento pessoal e social, como centro das práticas educativas (no plural) e como eixo transversal.

Uma prática que implique na intenção de construir um marco do fazer educativo em afinidade com as correntes contemporâneas teóricas e práticas, por meio de um leque de opções leitoras que se transforma no ponto de encontro de inclinações e preferências temáticas.

2. Cabe-nos, portanto, reverter o lema da descolarizacão que nós, promotores de leitura, temos defendido, uma vez que boa parte das práticas escolares tinham desterrado a condição prazerosa que as primeiras aproximações com a leitura exigem, isto em nome do “trabalhoso prazer de ler”, que promove esse tropeçar com a linguagem escrita, “com as suas ambiguidades e entonações”. Hoje em dia não é mais suficiente escutar a narração do conto, é preciso “tê-lo lido, isto é olhá-lo como uma forma e transitá-lo, palmo a palmo, como quem percorre um terreno minado” – como afirma María Fernanda Palácios. A literatura é, dentre todos os textos escritos, um recurso de exceção para o desenvolvimento da leitura. María Eugenia Dubois afirma que o “Sistema educativo em geral nunca levou em conta a transcendência de ler desde uma postura estética: evocando imagens, recordações, sentimentos, emoções. A leitura se estuda na escola como algo à margem, que está fora de nós mesmos para ser carregado, levado, recordado, mas não vivido, sentido.”

E é assim porque a literatura põe à prova nossa visão ordinária das coisas, e questiona nossos preconceitos. Permite ao homem, pegando emprestadas as palavras de Stevenson “chegar a compreender que não tem sistematicamente razão, e que aqueles de quem discorda não estão sempre absolutamente equivocados.”

3. Reivindicar a literatura dentro da escola. O que implica a “criação de um itinerário de leitura por parte dos docentes que permita às novas gerações transitar para as possibilidades de compreensão do mundo e desfrutar para a vida que a literatura abre”, como diz Teresa Colomer na introdução de Andar entre livros.1
Traçar, então, um itinerário de leitura, que depurado, decantado, maduro, permite uma experiência de mudança pessoal e social na qual cada um pode se reconhecer ou não. A escola não pode se isolar do contexto social no momento de estabelecer os objetivos de ensino, seus conteúdos e a maneira de transmiti-los.

Nessa aceitação transversal da leitura é preciso sustentar, em primeiro lugar, a leitura estética que nos leva a enfrentar os desafios das estruturas mentais e abre brechas na consciência do leitor, o que pode nos distanciar da literariedade.

Com isso não se quer dizer excluir a leitura informativa, apenas que o itinerário do leitor se afirma desde uma aproximação estética para abrir as comportas da compreensão textual que deriva de outros tipos de texto que dinamizam o aprendizado.

4. Criar as condições para um verdadeiro trabalho em rede, que tem se limitado a ser apenas anunciado, como podemos comprovar na prática com frequência. Um trabalho no contexto de políticas de leitura e escrita educativas, em torno das quais se articulam as estratégias interdisciplinares que fomentam a competência discursiva na aula.

5. Formar o docente como leitor, como conhecedor das propostas textuais estéticas e informativas e envolver a família no processo. Essas ações se dirigem, principalmente, às crianças e jovens em processo de formação. É precisamente para esse destinatário que a articulação se faz necessária. A escola e a família constituem instituições básicas de qualquer formulação de planos integrais de leitura; daí o trabalho de sensibilização e capacitação de pais e professores se convertem em etapas inevitáveis em programas dessa natureza.

Enfim, estamos diante de um itinerário possível, que ganha sentido apenas a partir de uma verdadeira valorização da leitura que nos conecte com a realidade através da palavra que tudo contém e que é, principalmente, uma forma de interagir com a realidade, de reinterpretá-la. Assim, a leitura se constitui – tomando emprestada uma expressão dos pescadores da costa oriental da Venezuela – num cabo de terra.

TRADUÇÃO: DOLORES PRADES

* Texto apresentado no Encontro de Leitura e Qualidade do ensino, organizado pela OEI e a Fundação SM, em Bogotá, novembro de 2009.
1 Colomer, Teresa. Andar entre livros. São Paulo: Global, 2007.
Bibliografia citada:
Agenda de políticas públicas sobre o livro e a edição, CERLALC.
Caraballo, Darwin; Pífano Clementina; Medina, María Beatriz. Consultora: María Elena Zapata. Libros para niños y jóvenes. Documentos de trabajo de Desarrollo Social – Educación. Caracas: Corporación Andina de Fomento, 2005.
Chartier, Anne-Marie. Enseñar a leer y escribir: una aproximación histórica. Espacios para la lectura. México: Fondo de Cultura Económica, 2004.
Larrosa, Jorge. La experiência de la lectura: espacios para la lectura. México: Fondo de Cultura Económica, 2003.
Palácios, Maria Fernanda. Cuentos para volar: 10 relatos venezolanos para celebrar un doble aniversario. Caracas: Producto, 2002.
Rosenblatt, Louise M. La experiencia de la lectura: espacios para la lectura. México: Fondo de Cultura Económica, 2002.

Disponível em: http://www.revistaemilia.com.br. Acesso em: 28.04.2012

terça-feira, 17 de abril de 2012


Excelente esse texto de Sírio Possenti sobre a polêmica envolvendo a retirada do dicionário Houaiss do mercado.
LIMPAR LIVROS? NOTA SOBRE DICIONÁRIOS
Há alguns dias se debate (não muito, claro) uma ação do Ministério Público de Uberlândia "contra" o dicionário Houaiss, por registrar acepções pejorativas da palavra "cigano". É mais uma atitude equivocada regida pela doutrina do politicamente correto, tão relevante em algumas ocasiões, tão mal compreendida em tantas outras.
Diversas manifestações bastante óbvias tentaram fazer com que o representante do MP entenda que dicionário é apenas o registro mais ou menos completo das palavras e de seus sentidos. Dicionário não inventa palavras; não inventa os sentidos das palavras; não incentiva uso de palavras em sentidos desabonadores (ou não); não condena palavras nem sentidos. Dicionário não ensina (a não ser indiretamente ortografia e sentidos de palavras até então desconhecidas). O que não quer dizer que seja "neutro", elaborado por marcianos ou anjos sem interesse ideológico. Sempre terá que tomar decisões – como outras tantas publicações nas áreas da economia, da política, da história, da ecologia, da religião…
Mas, se for bom, minimamente bom, anota as palavras atestadas e seus sentidos mais ou menos duradouros ou datados. Por exemplo, fui ao dicionário (Houaiss!) para saber se o emprego de "albergar", que aparece em citação na ação do Dr. Cléber Eustáquio Neves é adequado ou se é uma dessas manias estilísticas dos juristas: "o direito à liberdade de expressão não pode albergar posturas preconceituosas e discriminatórias, sobretudo quando caracterizadas como infração penal". O sinônimo mais próximo que achei foi "abrigar". Que já é uma metáfora das boas.
Na minha infância, por razões que não vêm ao caso, tive experiências razoavelmente significativas com ciganos, que, passando por Arroio Trinta, acampavam perto de nossa casa e nos visitavam para negócios diversos: comprar comida, vender tachos e cavalos, ofertas para ler nossas mãos etc. Circulavam avaliações sobre eles e seus comportamentos. Preconceituosas? Exageradas? Pode ser. Uma era que se deveria ter cuidado ao negociar com eles. Seriam muito espertos (mas quem não tentava ser esperto em situações desse tipo?).
É apenas um estereótipo, coisa comum. Circulam estereótipos de corintianos, de argentinos, de ingleses, de portugueses. E de ciganos. Que podem ou devem ser combatidos, mas nas arenas adequadas. A censura a um dicionário certamente não é uma delas, dada a natureza da obra. Registrar sentidos é um trabalho que não busca fundamento ou abrigo (albergue!) na liberdade de expressão. Dicionaristas estão longe de pensar assim. Ninguém está enunciando o que registra num dicionário. Nem mesmo seu autor. Nem está citando e dando a entender que concorda. Só registra (com vieses, como disse).
Pedir que a edição seja recolhida ou modificada é equivalente a pedir que se retirem animais de catálogos da fauna, ou que livros de anatomia suprimam órgãos ou partes do corpo que pareçam ofensivos (intestino grosso, pênis, cordas vocais etc., conforme o gosto ou a olhar do leitor – você já viu cordas vocais de perto?). A atitude lembra uma regra brasileira, se não mundial: denunciado um crime, pune-se o repórter e censura-se o jornal. Ou tira-se o sofá da sala…
Se o MP acha que deve agir em questões de ofensa à honra e casos assemelhadas, que processe, por exemplo, quem chama de cigano aos velhacos (nenhum dos cidadãos processados nos últimos tempos foi chamado de cigano; muito menos políticos considerados corruptos).
Aliás, para fundamentar sua ação, o MP vai precisar de um dicionário em que a acepção injuriosa esteja registrada e avaliada como negativa. Sem ela, vai se basear em quê? No gosto do funcionário?

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Das vergonhas de ser honesto - Mozahir Salomão Bruck

Muito interessante esse texto.

O filósofo Renato Janine Ribeiro analisa as práticas cotidianas de corrupção que caracterizam a tradição individualista do brasileiro e defende a necessidade de reforçar a dimensão coletiva



Mozahir Salomão Bruck
Uma longa conversa pelo telefone com o filósofo Renato Janine Ribeiro, professor da USP, a respeito da ética no cotidiano, trouxe-lhe à memória um episódio importante da vida brasileira: o pronunciamento, na tribuna, de um senador indignado que, ao protestar contra a lentidão na apuração de uma chacina de presos no Rio de Janeiro, por fim, desabafava: “No Brasil, chega-se ao ponto de os honestos terem vergonha de serem honestos”. O crime a que se referia o tribuno ficou conhecido como a Chacina do Satélite. O ano era 1914 e o senador Rui Barbosa. A chacina foi cometida contra marinheiros presos a bordo do navio Satélite, ancorado no Rio, então capital federal, no início do século passado. A autoria do crime foi apurada e assumida a partir de depoimentos dos assassinos confessos, mas, mesmo assim, já passados quatro anos, o crime começava a cair no esquecimento e na impunidade.

“De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto”, bradou o senador baiano, nascido em Salvador. O pronunciamento de Rui Barbosa entrou para a história há quase um século por sintetizar um triste sentimento presente em boa parte da sociedade brasileira – o de que ser correto não vale a pena em meio ao desrespeito geral a regras e normas, leis e preceitos.

A vergonha e o desalento em relação à honestidade e correção, no entanto, estão presentes não apenas em momentos históricos de indignação, como o citado anteriormente. Podem ser percebidos o tempo todo em nosso cotidiano: o desrespeito a quaisquer filas, seja a da padaria ou a do pedágio; ser atendido primeiro que aqueles que fizeram sua solicitação antes; jogar papel, latinha ou qualquer objeto na rua; beneficiar-se de contatos pessoais e obter privilégios na relação com o Estado; burlar prazos e exigências, seguidos pela maioria; esquivar-se de multas e outras punições, valendo-se de artifícios diversos.

São práticas cotidianas de corrupção pequenas, mas que não deixam de sê-lo e que colocam em xeque o respeito comum e a noção básica de coletividade. Comportamentos e posturas que têm deixado clara a necessidade de uma reflexão urgente sobre o sentido de bem comum e de vida comunitária. É a sensação, nos dias de hoje, de que a opção pela virtude e a honra torna as pessoas risíveis e de que o comportamento correto, na verdade, seguiria em direção oposta, ou seja, válida é a busca irrestrita da vantagem pessoal, que, afinal, se sobreporia ao bem comum. Jogar o palitinho de picolé na rua corrompe o meio ambiente. Furar a fila é corromper o mais antigo e justo concurso público do mundo. Daí que idosos ou outras pessoas que nela não podem permanecer, por algum tipo de dificuldade ou deficiência, merecem mesmo tratamento diferenciado. É a noção de equidade: tratar de modo diferente o que é diferente, mas por questão de justiça e para que, ao final, estejamos mais próximos da igualdade. Mais iguais.

Para o filósofo paulista, a sensação descrita por Rui Barbosa está há muito presente na história e na cultura brasileira, “até mais do que em outros países”, assinala. Abordando com cuidado o tema, que considera “bastante controverso”, Janine afirma que observa a questão a partir de dois pontos: a educação e a vida coletiva. Sobre a educação, “no sentido mais forte do termo”, o filósofo entende que é imprescindível que as pessoas saibam da importância de ser educado, ser atencioso e respeitoso na relação com o outro. “Esse tipo de educação não são apenas formas’’, salienta. ‘‘Quando a pessoa incorpora esse tipo de comportamento, ela está afirmando, pelas suas ações, que respeita os seus semelhantes. Isso é um ponto crucial, não apenas em relação à educação, mas em função de que daí nasce uma relação de comunidade bem melhor que a que teríamos antes.”

Senso do coletivo Outro ponto destacado por Janine diz respeito ao modo como vivemos em comunidade. É importante, diz ele, que as pessoas sintam que agir direito é imprescindível e que vale a pena. “Quando vivemos numa sociedade em que é tão comum o sucesso do mal-educado, do criminoso, isso nos causa uma sensação de que não precisamos agir bem e que é o certo ser assim, pois senão seremos passados para trás.” Segundo Janine, sabemos que esse é um grande problema no Brasil e que para superá-lo seria necessário que se construísse algo novo em termos de experiência de vida social.

O filósofo da USP salienta que, primeiramente, é necessário que se desenvolva um senso forte do coletivo, pois “isso também é uma coisa que está faltando muito entre nós”. Segundo Janine, na sociedade, o que é coletivo ficou muito empobrecido e por isso não temos muita noção do que é o bem comum. “Nossa sociedade, explica, se fraturou em bens e interesses particulares. Alguém lutar pelo bem comum está muito difícil. Aliás, está muito difícil até as pessoas entenderem o que seja o bem comum. É algo que terá que ser construído, ou seja, como nós vamos ter uma preocupação e empenho de nos voltarmos para as coisas coletivas e entendermos que o espaço coletivo também pode ser um espaço de realização.”.

Renato Janine não esconde ser um pouco cético em relação à possibilidade de que essas mudanças se deem. Para ele, a valorização da vida individual consolidou-se a tal ponto que os alunos e mesmo outras pessoas a quem, eventualmente, vai falar sobre ética confundem ética como uma vantagem pessoal que podem conquistar, e é exatamente o contrário. “Mostrar que pode haver uma realização coletiva não é fácil, mas é algo que precisa ser concretizado”, destaca.

Para o filósofo e escritor, é urgente que sejam criadas condições para uma vida ética e coletiva e, para que isso seja construído, a pessoa precisa se sentir realizada no espaço coletivo, por isso é preciso que esse espaço coletivo seja bom para todos. A questão que se coloca é se nós podemos ter uma vida ética sem a coletividade. “E, nesse caso, nossa sociedade vai caminhar cada vez para a individualidade e, assim, teremos que definir um novo tipo de ética”, conclui.

Mozahir Salomão Bruck é professor e pesquisador da PUC Minas.