Muito bom esse texto sobre leitura e qualidade do ensino. Recomendo a leitura
Leitura e qualidade do ensino
Um itinerário possível para a formação de leitores
Por María Beatriz Medina
María Beatriz Medina nasceu na
Venezuela. Formada em letras, autora, mediadora, pesquisadora na área de
leitura y literatura infantil, professora, e consultora. Atualmente participa
da Comissão Executiva do Banco del Libro, é presidente da filial venezuelana do
IBBY e membro do Conselho de Sinergia, uma rede de associações da sociedade
civil venezuelana.
Quando recebi o convite para
refletir sobre leitura e qualidade de ensino, me posicionei a partir do ponto
de vista de meu trabalho como promotora de leitura. E desse lugar me aproximei
do tema, agradecendo o convite, pois tais reflexões nos permitem tomar
distância e pensar sobre o que fazemos e como fazemos.
O engate inicial com essa
temática começou a se delinear a partir do que já trazíamos dentro dos alforjes,
como mediadores preocupados em formar um sujeito leitor independente, crítico e
cidadão responsável. Isto é, o desideratum implícito – ainda que no discurso –
presente em todos os espaços de promoção de leitura e, principalmente, na
escola.
Parecia fácil. Comecei fazendo um
balanço das possibilidades que a leitura oferece por e para a formação, mas no
caminho comecei a perceber – uma vez mais – que aproximar-se da leitura e do
trabalho de formar leitores é uma tarefa árdua, se avaliada pelas dimensões da
busca e pelo fio da evolução de um conceito sempre em reformulação.
I. Do que estamos
falando quando falamos em leitura?
Não podemos dizer que
compartilhamos do mesmo conceito de leitura revisto e transformado por
motivações ideológicas e pedagógicas e matizado por contribuições de concepções
sociolinguísticas e socioculturais de diferentes naturezas. Hoje em dia,
inclusive, se cai muitas vezes no erro de considerar que ler é simplesmente a
habilidade de decifrar signos, quando o ato de ler vai muito além deste
deciframento.
A leitura é acumulativa e propõe
sempre um diálogo entre o leitor e os códigos verbais e não verbais, que se
transforma em um espaço de elaboração e de construção de um ser social e
individual. A leitura é, antes de tudo, um ato comunicacional e – por isso –
uma prática social que entrelaça o texto escrito e o uso da linguagem. Quando
nos aproximamos com atenção da prática leitora, ou do uso da leitura dos textos
escritos, podemos percebê-la como uma prática social vital, situada na interação
pessoal.
David Barton e Mary Hamilton, no
texto “La literacidad entendida como práctica social”, consideram que a leitura
é capaz de “dar sentido às vidas por meio das práticas cotidianas”.
Não se trata de uma referência
casual, pois aqueles que como eu trabalham em projetos de promoção de leitura
podem constatar que a leitura dá sentido à vida, não apenas nas práticas
cotidianas, mas em situações difíceis, em que a ficção ou a metáfora se
transformam em ferramentas de exceção “para ler o entorno e interpretar a
realidade”. Por isso é necessário formar leitores como habitantes do mundo,
parafraseando Daniel Goldin.
Mas a leitura funciona também
como uma estratégia para o ensino, ainda que tenhamos que evitar o perigo de
cair no reducionismo instrumental ao considerá-la apenas uma ferramenta para o
desenvolvimento de competências que se identificam com a compreensão das
estruturas lógicas para apreender de qualquer maneira um texto proposto.
II. Para que formar
leitores?
O tema da formação de leitores
está relacionado ao tipo de cidadão que queremos. Sem sombra de dúvidas,
aspiramos a um leitor crítico, capaz de se posicionar no mundo, um leitor que
transcenda o mero deciframento e seja capaz de abordar a leitura informativa e
estética, enfrentando o texto, questionando-o, sentindo-o.
A palavra escrita e a leitura nos
ajudam a criar espaços para o desenvolvimento e a transformação individual e
social, uma vez que a experiência estética abarca a vastidão de nossa
contraditória condição humana e estabelece pontes com a realidade na qual
estamos submersos. Ela faz isto, claro está, de maneira metafórica e abstrata,
para possibilitar o desenvolvimento do ser social.
III. Quem é o responsável pela formação de leitores?
O Estado, sem dúvida. Ele é o
centro decisivo na hora da formulação, orientação e coordenação das políticas
públicas de leitura. Formar leitores exige o compromisso do Estado e uma sólida
articulação de distintas esferas da vida social: em primeiro lugar a escola, a
biblioteca, as organizações sociais que trabalham com a leitura e a indústria
do livro.
A formação de leitores, cabe
frisar, é uma pratica ancorada em solidas premissas sobre a leitura, tais como:
Constitui-se num elemento
inevitável na hora de educar para a vida democrática e participativa.
É um espaço para a formação do
cidadão responsável.
Transforma-se na “ferramenta” do
desenvolvimento de seres autônomos e críticos.
É uma bússola que orienta no
campo da informação e leva ao conhecimento.
Somos obrigados a levar em conta
as necessidades do contexto. Pois é justamente quando o contexto se faz
presente, o momento em que começam a sucumbir as certezas destas e de outras
premissas; isto porque a prática nos demonstra a saciedade da condição
modificadora da realidade.
Como aponta Anne-Marie Chartier,
ao longo do tempo a urgência de educar respondeu a um desafio social urgente
(salvar sua alma, construir a República, inserir-se no mundo do trabalho). Hoje
a urgência se articula em torno da formação de cidadãos.
III. Voltando ao tema que nos interessa: Leitura e qualidade
do ensino.
Em uma primeira aproximação,
vemos uma equação direta que deveria nos levar a fechar questões acerca do
trabalho contínuo e sustentado de formação de leitores em todos os espaços que
assumem esta tarefa. Obviamente, a escola não é uma exceção.
No entanto, para que essa equação
se faça realidade, é necessário assumir a leitura como um elemento vital de
desenvolvimento humano e promover, ao mesmo tempo, a internacionalização de uma
verdadeira valorização dessa prática.
É tarefa dos docentes articular
caminhos que deixem inequívoca a condição essencial da leitura para o ser
humano e abram as comportas para a multiplicidade de possibilidades que oferece
ao leitor como ferramenta para a comunicação e a experiência docentes.
IV. Como conseguir
isso na prática?
1. Em primeiro lugar, repetirei
uma máxima: criando dentro da escola espaços e tempos de leitura de uma grande
variedade de textos. Isto é, propiciando em espaços leitores e bibliotecas
escolares o encontro com textos de diferentes formatos, alinhados com os
objetivos escolares e assumindo a leitura como condição essencial para o
desenvolvimento pessoal e social, como centro das práticas educativas (no
plural) e como eixo transversal.
Uma prática que implique na
intenção de construir um marco do fazer educativo em afinidade com as correntes
contemporâneas teóricas e práticas, por meio de um leque de opções leitoras que
se transforma no ponto de encontro de inclinações e preferências temáticas.
2. Cabe-nos, portanto, reverter o
lema da descolarizacão que nós, promotores de leitura, temos defendido, uma vez
que boa parte das práticas escolares tinham desterrado a condição prazerosa que
as primeiras aproximações com a leitura exigem, isto em nome do “trabalhoso
prazer de ler”, que promove esse tropeçar com a linguagem escrita, “com as suas
ambiguidades e entonações”. Hoje em dia não é mais suficiente escutar a
narração do conto, é preciso “tê-lo lido, isto é olhá-lo como uma forma e
transitá-lo, palmo a palmo, como quem percorre um terreno minado” – como afirma
María Fernanda Palácios. A literatura é, dentre todos os textos escritos, um
recurso de exceção para o desenvolvimento da leitura. María Eugenia Dubois
afirma que o “Sistema educativo em geral nunca levou em conta a transcendência
de ler desde uma postura estética: evocando imagens, recordações, sentimentos,
emoções. A leitura se estuda na escola como algo à margem, que está fora de nós
mesmos para ser carregado, levado, recordado, mas não vivido, sentido.”
E é assim porque a literatura põe
à prova nossa visão ordinária das coisas, e questiona nossos preconceitos.
Permite ao homem, pegando emprestadas as palavras de Stevenson “chegar a
compreender que não tem sistematicamente razão, e que aqueles de quem discorda
não estão sempre absolutamente equivocados.”
3. Reivindicar a literatura
dentro da escola. O que implica a “criação de um itinerário de leitura por
parte dos docentes que permita às novas gerações transitar para as
possibilidades de compreensão do mundo e desfrutar para a vida que a literatura
abre”, como diz Teresa Colomer na introdução de Andar entre livros.1
Traçar, então, um itinerário de
leitura, que depurado, decantado, maduro, permite uma experiência de mudança
pessoal e social na qual cada um pode se reconhecer ou não. A escola não pode
se isolar do contexto social no momento de estabelecer os objetivos de ensino,
seus conteúdos e a maneira de transmiti-los.
Nessa aceitação transversal da
leitura é preciso sustentar, em primeiro lugar, a leitura estética que nos leva
a enfrentar os desafios das estruturas mentais e abre brechas na consciência do
leitor, o que pode nos distanciar da literariedade.
Com isso não se quer dizer
excluir a leitura informativa, apenas que o itinerário do leitor se afirma
desde uma aproximação estética para abrir as comportas da compreensão textual
que deriva de outros tipos de texto que dinamizam o aprendizado.
4. Criar as condições para um
verdadeiro trabalho em rede, que tem se limitado a ser apenas anunciado, como
podemos comprovar na prática com frequência. Um trabalho no contexto de
políticas de leitura e escrita educativas, em torno das quais se articulam as
estratégias interdisciplinares que fomentam a competência discursiva na aula.
5. Formar o docente como leitor,
como conhecedor das propostas textuais estéticas e informativas e envolver a
família no processo. Essas ações se dirigem, principalmente, às crianças e
jovens em processo de formação. É precisamente para esse destinatário que a
articulação se faz necessária. A escola e a família constituem instituições
básicas de qualquer formulação de planos integrais de leitura; daí o trabalho
de sensibilização e capacitação de pais e professores se convertem em etapas
inevitáveis em programas dessa natureza.
Enfim, estamos diante de um
itinerário possível, que ganha sentido apenas a partir de uma verdadeira
valorização da leitura que nos conecte com a realidade através da palavra que
tudo contém e que é, principalmente, uma forma de interagir com a realidade, de
reinterpretá-la. Assim, a leitura se constitui – tomando emprestada uma
expressão dos pescadores da costa oriental da Venezuela – num cabo de terra.
TRADUÇÃO: DOLORES PRADES
* Texto apresentado no Encontro de Leitura e Qualidade do
ensino, organizado pela OEI e a Fundação SM, em Bogotá, novembro de 2009.
1 Colomer, Teresa. Andar entre livros. São Paulo: Global,
2007.
Agenda de políticas públicas sobre o livro e a edição,
CERLALC.
Caraballo, Darwin; Pífano Clementina; Medina, María Beatriz.
Consultora: María Elena Zapata. Libros para niños y jóvenes. Documentos de
trabajo de Desarrollo Social – Educación. Caracas: Corporación Andina de
Fomento, 2005.
Chartier, Anne-Marie. Enseñar a leer y escribir: una
aproximación histórica. Espacios para la lectura. México: Fondo de Cultura
Económica, 2004.
Larrosa, Jorge. La experiência de la lectura: espacios para
la lectura. México: Fondo de Cultura Económica, 2003.
Palácios, Maria Fernanda. Cuentos para volar: 10 relatos
venezolanos para celebrar un doble aniversario. Caracas: Producto, 2002.
Rosenblatt, Louise M. La experiencia de la lectura: espacios
para la lectura. México: Fondo de Cultura Económica, 2002.