terça-feira, 17 de abril de 2012


Excelente esse texto de Sírio Possenti sobre a polêmica envolvendo a retirada do dicionário Houaiss do mercado.
LIMPAR LIVROS? NOTA SOBRE DICIONÁRIOS
Há alguns dias se debate (não muito, claro) uma ação do Ministério Público de Uberlândia "contra" o dicionário Houaiss, por registrar acepções pejorativas da palavra "cigano". É mais uma atitude equivocada regida pela doutrina do politicamente correto, tão relevante em algumas ocasiões, tão mal compreendida em tantas outras.
Diversas manifestações bastante óbvias tentaram fazer com que o representante do MP entenda que dicionário é apenas o registro mais ou menos completo das palavras e de seus sentidos. Dicionário não inventa palavras; não inventa os sentidos das palavras; não incentiva uso de palavras em sentidos desabonadores (ou não); não condena palavras nem sentidos. Dicionário não ensina (a não ser indiretamente ortografia e sentidos de palavras até então desconhecidas). O que não quer dizer que seja "neutro", elaborado por marcianos ou anjos sem interesse ideológico. Sempre terá que tomar decisões – como outras tantas publicações nas áreas da economia, da política, da história, da ecologia, da religião…
Mas, se for bom, minimamente bom, anota as palavras atestadas e seus sentidos mais ou menos duradouros ou datados. Por exemplo, fui ao dicionário (Houaiss!) para saber se o emprego de "albergar", que aparece em citação na ação do Dr. Cléber Eustáquio Neves é adequado ou se é uma dessas manias estilísticas dos juristas: "o direito à liberdade de expressão não pode albergar posturas preconceituosas e discriminatórias, sobretudo quando caracterizadas como infração penal". O sinônimo mais próximo que achei foi "abrigar". Que já é uma metáfora das boas.
Na minha infância, por razões que não vêm ao caso, tive experiências razoavelmente significativas com ciganos, que, passando por Arroio Trinta, acampavam perto de nossa casa e nos visitavam para negócios diversos: comprar comida, vender tachos e cavalos, ofertas para ler nossas mãos etc. Circulavam avaliações sobre eles e seus comportamentos. Preconceituosas? Exageradas? Pode ser. Uma era que se deveria ter cuidado ao negociar com eles. Seriam muito espertos (mas quem não tentava ser esperto em situações desse tipo?).
É apenas um estereótipo, coisa comum. Circulam estereótipos de corintianos, de argentinos, de ingleses, de portugueses. E de ciganos. Que podem ou devem ser combatidos, mas nas arenas adequadas. A censura a um dicionário certamente não é uma delas, dada a natureza da obra. Registrar sentidos é um trabalho que não busca fundamento ou abrigo (albergue!) na liberdade de expressão. Dicionaristas estão longe de pensar assim. Ninguém está enunciando o que registra num dicionário. Nem mesmo seu autor. Nem está citando e dando a entender que concorda. Só registra (com vieses, como disse).
Pedir que a edição seja recolhida ou modificada é equivalente a pedir que se retirem animais de catálogos da fauna, ou que livros de anatomia suprimam órgãos ou partes do corpo que pareçam ofensivos (intestino grosso, pênis, cordas vocais etc., conforme o gosto ou a olhar do leitor – você já viu cordas vocais de perto?). A atitude lembra uma regra brasileira, se não mundial: denunciado um crime, pune-se o repórter e censura-se o jornal. Ou tira-se o sofá da sala…
Se o MP acha que deve agir em questões de ofensa à honra e casos assemelhadas, que processe, por exemplo, quem chama de cigano aos velhacos (nenhum dos cidadãos processados nos últimos tempos foi chamado de cigano; muito menos políticos considerados corruptos).
Aliás, para fundamentar sua ação, o MP vai precisar de um dicionário em que a acepção injuriosa esteja registrada e avaliada como negativa. Sem ela, vai se basear em quê? No gosto do funcionário?

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