Gostei muito desse texto da Profª Leiva. Como sempre, sua escrita nos possibilita boas reflexões.
Pretendo, a partir de dados coletados longitudinalmente, a respeito do processo de produção de texto na escola, estabelecer um raciocínio analógico com o filme Central do Brasil, de Walter Sales Júnior.
Na narrativa de ficção, a personagem Dora é uma ex-professora que ganha a vida escrevendo cartas para aqueles que não sabem escrever: os analfabetos da grande central que é este País. Analfabetos em relação à posse do código escrito reconhecem, no entanto, nessa escrita que lhes falta, uma possibilidade de estabelecer algum tipo de interlocução. E, ditando para Dora escrever, revelam, nas notícias, os mais diferentes sentimentos: amor (meu querido), desejo (meu tesão), (quero sentir seu corpo), ódio (você foi a pior coisa que me aconteceu); esperança, fé.
Dora, no entanto, escreve sem ter consciência do grande papel pessoal e social da escrita e realiza sua atividade indiferente aos destinos das pessoas que por ela procuram. Escreve por escrever, sem estabelecer vínculos ou sentido, fingindo que realiza pela escrita a concretização dos desejos expressos nas vozes desses analfabetos.
Então, as cartas jamais são enviadas, o destino delas é o lixo ou a gaveta. Controlando os textos, controla igualmente os destinos dos que não sabem escrever. Arvora-se em ser Deus, em assumir, no contraponto da existência, um determinado poder e selando a vida desse seres de acordo com seu entendimento. Mal sabia Dora que ela também fazia parte de um outro grupo de analfabetos: aqueles que, dominando o código, não conseguem usá-lo de forma a se fazer entender pelo outro.
O que pude perceber, durante quase dez anos de investigação em escolas que atendem ao Ensino Fundamental, é exatamente um descompromisso em relação ao ensino de produção de texto, o que afasta os alunos da possibilidade de entender a linguagem como prática de constituição de si mesmos, da própria linguagem e do mundo que os cerca. Foi possível constatar a existência de uma escola mandatária (manda escrever), sem, no entanto, sistematizar de forma coerente esse ensino.
Com que posso, então, comparar essa atitude? Tal como Dora, os professores que, durante tantos anos, passaram pela vida dos sujeitos de nossa investigação, também se mostraram indiferentes aos efeitos que o ensino da escrita poderia provocar nesses sujeitos, sem consciência do papel ativo que a escrita pode representar e da alteração que esta pode provocar na existência daqueles que ensinam. À moda de Dora, os professores colaboram na produção de texto, só que não oferecem aos alunos possibilidades de retomo, em processo de interlocução. Não há diálogo entre eles. Os cadernos escolares (com exceção de um) nada registram sobre a especificidade e funcionalidade da escrita e, quando indagados a esse respeito, os alunos quase sempre afirmavam que: "a professora não fala nada não. Ela pede sempre pra escrever e pronto".
Trata-se, então, da ausência de um trabalho partilhado, cooperativo, em que práticas discursivas pudessem resultar em produções de novas articulações, capazes de realizar a dialogia no quadro da dinâmica social. Negar esse processo no aluno não equivaleria a torná-lo analfabeto? Conhecer a escrita, mas não saber usá-la é caminho para a submissão. Essa ausência de interação pode ser confirmada ainda em outras passagens: em vários anos de coleta de dados, ao finalizar o ano letivo, professores me procuravam para me "presentear" com textos que os alunos produziam e que não tiveram destinação: "Você quer os textos? Vão para o lixo mesmo". Ou quantos textos ficaram apenas registrados nos cadernos (exercício escolar), como pesos mortos, esquecidos, sem destinatário e, depois, tomaram-se manchas amarelas, sem função primeira? Quantas vezes, visitando as escolas, recebia dos alunos (sobretudo os da camada socialmente desprivilegiada) oferta de textos: "A senhora qué, eu dô, a professora não vai ler mesmo" .
Por outro lado, num confronto ainda mais amplo, a escola não ensinou, em nenhum momento, que escrever é estabelecer interlocução, que escrever é dialogar com o outro não presente. Assim como Dora não sabia o que praticava, igualmente a escola - consciente ou não - não sabe o que pratica. Controla, pois, os atores implicados e segura os destinos desses seres. Não propiciando aos alunos os usos efetivos da escrita, não os capacita para o enfrentamento com o mundo, principalmente quando se enfatiza o domínio da leitura e a escrita como códigos da modernidade.
Reside aí, talvez, o grande choque: Dora, não podendo transformar a vida dos miseráveis da Central, prefere mantê-los onde estão.
A escola mantém onde estão, não todos os sujeitos, mas exatamente aqueles que, como no filme, mais dela precisam. O resultado é a impossibilidade, para esses sujeitos, de se transformarem em produtores protagonistas da própria vida e de se transformarem em produtores de texto da própria história. Então, é mais fácil produzir a exclusão e, com ela, a manutenção das diferenças e legitimação da ordem social existente. No entanto, não é justo viver um tipo de opressão porque não se tem a posse da escrita. Aprender a escrever e escrever como prática interativa é um dos caminhos para a liberdade. É criar a autonomia (não precisa que alguém diga o que o outro tem de escrever e que o faça em seu lugar) estabelecer a competência necessária para a relação com o outro.
No filme, a personagem Dora tem sua vida alterada. Essa alteração tem início no envolvimento com o personagem Josué, em tomo do qual gira a trama. Circunstancialmente começa com ele uma longa caminhada, portadores de uma carta em busca de seu interlocutor e de seu destino. E, no processo de alteração, vai, perplexa, tomando consciência do que seus atos provocaram. Acontece que, para isso, foi preciso que ela mesma percorresse o caminho de elucidação desse processo. Ela mesma teve de realizar a travessia e acaba tendo de ser a portadora pessoal de uma carta que, não fosse outra articulação do destino, teria ido para o lixo, como tantas outras. Dentre várias outras abordagens que o filme permite realizar, retomo duas cenas importantes no processo de travessia de Dora. A primeira delas é quando, encontrando os irmãos de Josué (também analfabetos), se vê na condição de alguém que deve ser o leitor de uma carta que o pai do menino enviara à sua mãe. Dora precisa "ler" em voz alta uma carta, parecida com tantas outras que provavelmente escreveu e jogou no lixo. Vê-se então tomada de um grande susto e precisa tomar coragem para começar a ler. Vive o outro lado do processo: alguém que lê um texto, não para fingir um conteúdo, não para corrigir o que nele está escrito, mas, fundamentalmente, para ler o que nele está contido de história. Para além do código, se transforma em um sujeito que, vivendo a interlocução, estremece. Aqui também a analogia pode ser feita: em nenhum momento da investigação foi possível perceber o professor como leitor de texto do aluno, mas um professor que, na maioria das vezes, dá um visto no caderno. Um visto não significa visto com os olhos e lido em busca de compreensão do que lê. Dora, ao cumprir, ela mesma, o papel de mediadora no processo de interlocução, pôde ter consciência do que de fato esse ato representava. Percebeu que a ação praticada produziu novas relações e, com elas, novos saberes. Viveu, ela mesma, o envolvimento, a interação, uma história de amor com um outro, a entrega. Por isso, pôde rir e chorar.
Hoje, também eu, fazendo travessias, pergunto-me se, para ocorrerem as mudanças que e sejamos em relação a uma educação que qualifique igualmente a todos, não seria necessário que, cada um a seu modo, realizasse a travessia à moda de Dora. Pergunto-me se não falta ao professor partilhar, ele mesmo, esse caminho para poder compreendê-lo. Dizendo melhor: será que não falta, na formação dos profissionais de ensino de Língua Portuguesa, haverem vivenciado um processo de constituição como produtores de texto, uma relação com a escrita e com o papel que ela representa? Não são, os professores mesmos, destituídos dessa interação? Não são sujeitos para quem também foi negada essa possibilidade e, por conseguinte, também não puderam partilhar um caminho individual de relação com a escrita? Talvez seja esta a questão: não poder testemunhar a própria experiência, porque não a tem.
A revelação presente nas últimas cenas do filme permite outra importante constatação: Dora, finda a sua travessia, compreendendo que precisava afastar-se de Josué, começa o seu caminho de volta. Sente que deixa para trás alguém amado, com quem necessita e deseja se comunicar. Quer chorar e então vem a saída: ela abre a bolsa e retira o seu velho bloco de trabalho e uma caneta. Aquele bloco antes usado como forma de enganar, passa a ganhar significação na vida de Dora. "Josué, faz muito tempo que não mando uma carta para alguém. Agora estou mandando essa pra você ...
Ela mesma não tinha, pois, com quem dividir a sua existência. Tece, dessa forma, a tessitura do texto, como quem olha nos olhos do Josué, seu interlocutor, tal como realmente se sente e é: ela também não possui identidade, busca, como Josué, o pai perdido na infância e dele sente saudades. Sabia, portanto, para quem escrevia e para que escrevia. Escreve, pela primeira vez, estabelecendo uma relação entre seres. Faz, então, a travessia necessária na vida e, conseqüentemente, na escrita, naquilo que ela representa. Sabia que essa carta não poderia ficar engavetada, senão, de que se nutriria o seu amor?
Concluindo a analogia iniciada, para que essa mediação produza os efeitos desejados é preciso que o profissional que ensina a ler e a escrever, além da compreensão dos referentes teóricos que possam iluminar o seu fazer, passe pela busca, pela mobilização, e que isto aconteça dentro de um espaço de uma ética criativa (Dora se mobilizou, quando se sentiu responsável por), possibilitando produzir novas ações, novas relações e novos saberes necessários a uma educação que contemple e respeite a interação como fonte de constituição da existência humana. Assim também é preciso que a escola procure um caminho diferente do já traçado e que introduza, na sala de aula, ações realmente interativas, para que a experiência humana de escrever se inserida de forma significativa na vida de sujeitos, conferindo, dessa forma, à linguagem o seu papel na construção da realidade.
(Publicado, originalmente na Revista Presença Pedagógica - v.5, n.27 - mai./jun. 1999).
Leiva de Figueiredo Viana Leal é professora, pesquisadora do Ceale / FAE / UFMG.
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