Na antiga parábola grega há uma raposa que todos os dias tenta intercetar o caminho miudinho e reto que o porco-espinho percorre. Como sabemos, as raposas, além da sua beleza e rapidez, têm a proverbial astúcia que faz delas estrategas reconhecidas no mundo animal. Esta cercava todos os dias a toca do porco-espinho como quem estivesse simplesmente em passeio, e quando menos se esperava irrompia, num arrebatamento aparentemente vitorioso. O porco-espinho, porém, agia em sentido contrário. Com o seu movimento deselegante e rotineiro, dir-se-ia que optava viver em função de uma coisa só, muito sua e muito doméstica. Mas a verdade é que não deixava de fazer uma defesa consistente do seu domínio. Sempre que a raposa saltava para surpreendê-lo, o porco-espinho enrolava-se todo, tornando-se numa impenetrável bola bélica, cheia de pontas aguçadas em todas as direções. Perante isso a raposa tinha de recuar à floresta para a preparação de novos esquemas. A moral da parábola é a seguinte: «A raposa sabe muitas coisas, mas o porco-espinho sabe uma coisa muito importante».
De que é que fala esta parábola? Talvez não do elogio da raposa por contraposição ao porco-espinho ou vice-versa. Talvez fale simplesmente das diferenças, tão naturais quanto misteriosas, que reconhecemos em nós próprios e nos outros. Há quem tenha como dom saber muitas coisas. Há quem tenha como missão saber bem uma coisa só.
É interessante que o filósofo Isaiah Berlin parta desta história para dizer que existem duas categorias de pessoas: as que estão próximas das características da raposa e as que são mais do tipo porco-espinho. Ambas têm, como seria de esperar, grandes qualidades e outras tantas limitações. A raposa olha o mundo na sua complexidade e é capaz de se mover numa pluralidade de níveis, como se estes fossem simultâneos. Interessa-se por muitas coisas, rodeia, fareja, espreita: é sonhadora e brilhante, mesmo correndo o risco da dispersão. O porco-espinho vive sob o signo da simplificação e da visão unificada. De um grande enredo, o porco-espinho escolhe retirar uma ideia apenas, que transforma depressa num princípio organizador de toda a realidade. A raposa é polifónica e bilingue, uma espécie de catalisador do novo, ainda que à custa de incuráveis interrogativas e dilemas. O porco-espinho desconfia de tudo o que não se relaciona de forma direta com a ideia-chave que o faz correr, valoriza sobretudo a convergência, a atenção e o aprofundamento. A raposa não suporta ter diante de si uma fila de dias iguais, enquanto que o porco-espinho não deseja outra coisa. O porco-espinho é mono temático, mas completamente consequente. Define o essencial e faz por ignorar tudo o resto. A raposa segue todos os trilhos que pode, mas arrisca mais vezes a inutilidade.
É interessante que o filósofo Isaiah Berlin parta desta história para dizer que existem duas categorias de pessoas: as que estão próximas das características da raposa e as que são mais do tipo porco-espinho. Ambas têm, como seria de esperar, grandes qualidades e outras tantas limitações. A raposa olha o mundo na sua complexidade e é capaz de se mover numa pluralidade de níveis, como se estes fossem simultâneos. Interessa-se por muitas coisas, rodeia, fareja, espreita: é sonhadora e brilhante, mesmo correndo o risco da dispersão. O porco-espinho vive sob o signo da simplificação e da visão unificada. De um grande enredo, o porco-espinho escolhe retirar uma ideia apenas, que transforma depressa num princípio organizador de toda a realidade. A raposa é polifónica e bilingue, uma espécie de catalisador do novo, ainda que à custa de incuráveis interrogativas e dilemas. O porco-espinho desconfia de tudo o que não se relaciona de forma direta com a ideia-chave que o faz correr, valoriza sobretudo a convergência, a atenção e o aprofundamento. A raposa não suporta ter diante de si uma fila de dias iguais, enquanto que o porco-espinho não deseja outra coisa. O porco-espinho é mono temático, mas completamente consequente. Define o essencial e faz por ignorar tudo o resto. A raposa segue todos os trilhos que pode, mas arrisca mais vezes a inutilidade.
A propósito deste debate, apetece retomar o poema de Alberto Caeiro:
«A espantosa realidade das coisas
É a minha descoberta de todos os dias.
Cada coisa é o que é,
E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra,
E quanto isso me basta…».
José Tolentino Mendonça
In Diário de Notícias (Madeira), 09.05.11
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