segunda-feira, 23 de maio de 2011

Polêmica vazia - Carlos Alberto Faraco


Nos últimos dias temos acompanhado uma discussão em torno de uma polêmica criada sobre um livro didático de língua portuguesa distribuído pelo MEC às escolas da rede pública de ensino. A questão envolve a variação linguística e foi muito mal discutida pela grande emprensa (Folha de São Paulo, Revista Veja, Jornal Nacional, Rádio CBN e muitas outras). Também foram publicados textos de estudiosos da linguagem, buscando esclarecer a celeuma criada pelos jornalistas. Desse modo, também sinto-me na obrigação de deixar registrado aqui algo que possa contribuir para esclarecer tantos equívocos ditos a respeito da referida obra e, consequentemente, sobre a língua. Para tanto, julguei interessante publicar um texto de Carlos Alberto Faraco, estudioso da língua(gem) muito sério e que discute a questão com muita propriedade e competência.


Publicado em 19/05/2011 | Carlos Alberto Faraco

O desvelamento da nossa cara linguística tem incomodado profundamente certa intelec­­­tuali­­­dade. A complexidade da realidade parece que lhes tira o ar e o chão

Corre pela imprensa e pela internet uma polêmica sobre o livro didático Por uma vida melhor, da coleção Viver, aprender, distribuída pelo Programa Nacional do Livro Didático (do MEC) para escolas voltadas à Educação de Jovens e Adultos (EJA). Segundo seus críticos, o livro, ao abordar a variação linguística, estaria fazendo a apologia do “erro” de português e desvalorizando, assim, o domínio da chamada norma culta.

O tom geral é de escândalo. A polêmica, no entanto, não tem qualquer fundamento. Quem a iniciou e quem a está sustentando pelo lado do escândalo, leu o que não está escrito, está atirando a esmo, atingindo alvos errados e revelando sua espantosa ignorância sobre a história e a realidade social e linguística do Brasil.

Pior ainda: jornalistas respeitáveis e até mesmo um conhecido gramático manifestam indignação claramente apenas por ouvir dizer e não com base numa análise criteriosa do material. Não podemos senão lamentar essa irresponsável atitude de pessoas que têm a obrigação, ao ocupar o espaço público, de seguir comezinhos princípios éticos.

Se o fizessem, veriam facilmente que os autores do livro apenas seguem o que recomenda o bom senso e a boa pedagogia da língua. O assunto é a concordância verbal e nominal – que, como sabemos – se realiza, no português do Brasil, de modo diferente de variedade para variedade da língua. Há significativas diferenças entre as variedades ditas populares e as variedades ditas cultas. Essas diferenças decorrem do modo clivado como se constituiu a sociedade brasileira. Ou seja, a divisão linguística reflete a divisão econômica e social em que se assentou nossa sociedade, divisão que não fomos ainda capazes de superar ou, ao menos, de diminuir substancialmente.

Muitos de nós acreditamos que a educação é um dos meios de que dispomos para enfrentar essa nossa profunda clivagem econômica e social. Nós linguistas, por exemplo, defendemos que o ensino de português crie condições para que todos os alunos alcancem o domínio das variedades cultas, variedades com que se expressa o mundo da cultura letrada, do saber escolarizado.

Para alcançar esse objetivo, é indispensável informar os alunos sobre o quadro da variação linguística existente no nosso país e, a partir da comparação das variedades, mostrar-lhes os pontos críticos que as diferenciam e chamar sua atenção para os efeitos sociais corrosivos de algumas dessas diferenças (o preconceito linguístico – tão arraigado ainda na nossa sociedade e que redunda em atitudes de intolerância, humilhação, exclusão e violência simbólica com base na variedade linguística que se fala). Por fim, é preciso destacar a importância de conhecer essa realidade tanto para dominar as variedades cultas, quanto para participar da luta contra o preconceito linguístico.

É isso – e apenas isso – que fazem os autores do livro. E não somente os autores desse livro, mas dos livros de português que têm sido escritos já há algum tempo. Subjacentes a essa direção pedagógica estão os estudos descritivos da realidade histórica e social da língua portuguesa do Brasil, estudos que têm desvelado, com cada vez mais detalhes, a nossa complexa cara linguística.

Desses estudos nasceu naturalmente a discussão sobre que caminhos precisamos tomar para adequar o ensino da língua a essa realidade de modo a não reforçar (como fazia a pedagogia tradicional) o nosso apartheid social e linguístico, mas sim favorecer a democratização do domínio das variedades cultas e da cultura letrada, domínio que foi sistematicamente negado a expressivos segmentos de nossa sociedade ao longo da nossa história.

O desvelamento da nossa cara linguística, porém, tem incomodado profundamente certa intelectualidade. A complexidade da realidade parece que lhes tira o ar e o chão. Preferem, então, apegar-se dogmática e raivosamente à simplicidade dos juízos absolutos do certo e do errado. Mostram-se assim pouco preparados para o debate franco, aberto e desapaixonado que essas questões exigem.

Carlos Alberto Faraco, linguista, foi professor de Português e reitor da UFPR.

Disponível em http://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/conteudo.phtml?tl=1&id=1127433&tit=Polemica-vazia. Acesso em: 22.05.2011

2 comentários:

do avesso disse...

E NÃO É QUE TIVEMOS A MESMA IDEIA?! PENA QUE QUEM DEVERIA NÃO LÊ. E FICAMOS A CADA EPISÓDIO OUTRO, ESCLARERENCO O ESCLARECIDO.
ABRAÇOS.

PS. GOSTEI DA CARA NOVA DO BLOG.

Tania Aires disse...

Muito obrigada!! Aderi ao seu exemplo: mudar, variar, inovar!!!