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terça-feira, 16 de agosto de 2011
DÁVIDA - CZESLAW MILOSZ
Um dia tão feliz.
A névoa baixou cedo, eu trabalhava no jardim.
Os colibris se demoravam sobre a flor de
[ madressilva.
Não havia coisa na terra que eu quisesse
[ possuir.
Não conhecia ninguém que valesse a pena
[ invejar.
O que aconteceu de mau, esqueci.
Não tinha vergonha ao pensar que fui quem sou.
Não sentia no corpo nenhuma dor.
Me endireitando, vi o mar azul e velas.
COMPLETAS - MANUEL A, PINA
A meu favor tenho o teu olhar
testemunhando por mim
perante juízes terríveis:
a morte, os amigos, os inimigos.
E aqueles que me assaltam
à noite na solidão do quarto
refugiam-se em fundos sítios dentro de mim
quando de manhã o teu olhar ilumina o quarto.
Protege-me com ele, com o teu olhar,
dos demónios da noite e das aflições do dia,
fala em voz alta, não deixes que adormeça,
afasta de mim o pecado da infelicidade.
segunda-feira, 8 de agosto de 2011
sábado, 30 de julho de 2011
quinta-feira, 14 de julho de 2011
Linguagem e Docência: Estudo concluiu que os artigos científicos mais ac...
Linguagem e Docência: Estudo concluiu que os artigos científicos mais ac...: "Imagem: Sofia Moutinho ‘Filogenia de besouros aquáticos esclarece corrida evolutiva entre gêneros’. ‘Epidemia do vírus influenza pode se..."
quarta-feira, 13 de julho de 2011
chiaroscuro: lua bonita
chiaroscuro: lua bonita: "leonardo soares http://www.youtube.com/watch?v=5oWadSUHDQg "
segunda-feira, 30 de maio de 2011
sexta-feira, 27 de maio de 2011
PARA ALEXANDRE FERRARI
Dedico este texto de MARCELO COELHO ao meu amigo ALEXANDRE FERRARI
O kit anti-homofobia
Vi os três filmes que fariam parte, segundo se noticia, do kit “Escola Sem Homofobia”, do Ministério da Educação. “Fariam”, porque cedendo a pressões a presidente Dilma Rousseff resolveu suspender o projeto.
Achei os filmes bonitos, delicados, amorosos. O último, especialmente, sobre um garoto que se sente melhor como travesti, comoveu-me um bocado.
O primeiro, um bocado longo, conta em desenhos a amizade entre dois meninos, o modo como são chamados de gays pelos colegas de escola, e o beijo que um deles dá no primo do amigo.
Um rápido corte, e o menino está sozinho, na cama, preocupado com a própria sexualidade. “Será que eu sou gay?” Mas, na classe, ele se interessa também por uma menina. Conclui que não há nada de errado em gostar de pessoas de ambos os sexos.
O outro filme fala de duas amigas que ficaram de mãos dadas numa festa, do namoro que começa, e das piadas que circulam na internet sobre o relacionamento.
Falam-se pelo telefone; combinam de “enfrentar juntas essa barra”. As imagens seguintes mostram as expressões faciais dos colegas da escola, de espanto, constrangimento ou aceitação.
Concordo que não se trata apenas de uma campanha “contra a homofobia”. No seguinte sentido: não se demonizam os homofóbicos. Não se exige deles que reprimam, em silêncio, sua reprovação em nome da tolerância.
A ideia é diferente. Os filmes não são anti-homofobia, mas sim pró-homofilia. Ou seja, não se trata de dizer que se deve respeitar “os diferentes”, mas sim que se deve ver, nos “diferentes”, o que têm de igual a nós.
São pessoas inicialmente em dúvida sobre o próprio desejo, que o descobrem e se aceitam a si mesmos como são.
Eis uma coisa que diz respeito a todo ser humano, heterossexual, bissexual, homossexual ou qualquer outra coisa.
Os filmes privilegiam não o “inimigo” a ser combatido, a saber o homófobo, mas sim o amigo, o semelhante, o irmão, seja travesti, homossexual ou bi. Visam a conquistar nossa simpatia pelo outro, não nossa antipatia pelos que não gostam do outro.
Nesse sentido, não vejo como de uma perspectiva religiosa mais ampla se possa condenar esses filmes: eles falam de amor, de compreensão, de simpatia. Não de uma tolerância forçada, que se quer extrair dos outros de forma demonizadora, fazendo dos homofóbicos de hoje os párias da sociedade civilizada. Infelizmente, muitos homofóbicos parecem só se sentir bem nesse papel.
Escrito por Marcelo Coelho às 00h13
Disponível em: http://marcelocoelho.folha.blog.uol.com.br Acesso: 27.05.2011
segunda-feira, 23 de maio de 2011
Polêmica vazia - Carlos Alberto Faraco
Nos últimos dias temos acompanhado uma discussão em torno de uma polêmica criada sobre um livro didático de língua portuguesa distribuído pelo MEC às escolas da rede pública de ensino. A questão envolve a variação linguística e foi muito mal discutida pela grande emprensa (Folha de São Paulo, Revista Veja, Jornal Nacional, Rádio CBN e muitas outras). Também foram publicados textos de estudiosos da linguagem, buscando esclarecer a celeuma criada pelos jornalistas. Desse modo, também sinto-me na obrigação de deixar registrado aqui algo que possa contribuir para esclarecer tantos equívocos ditos a respeito da referida obra e, consequentemente, sobre a língua. Para tanto, julguei interessante publicar um texto de Carlos Alberto Faraco, estudioso da língua(gem) muito sério e que discute a questão com muita propriedade e competência.
Publicado em 19/05/2011 | Carlos Alberto Faraco
O desvelamento da nossa cara linguística tem incomodado profundamente certa intelectualidade. A complexidade da realidade parece que lhes tira o ar e o chão
Corre pela imprensa e pela internet uma polêmica sobre o livro didático Por uma vida melhor, da coleção Viver, aprender, distribuída pelo Programa Nacional do Livro Didático (do MEC) para escolas voltadas à Educação de Jovens e Adultos (EJA). Segundo seus críticos, o livro, ao abordar a variação linguística, estaria fazendo a apologia do “erro” de português e desvalorizando, assim, o domínio da chamada norma culta.
O tom geral é de escândalo. A polêmica, no entanto, não tem qualquer fundamento. Quem a iniciou e quem a está sustentando pelo lado do escândalo, leu o que não está escrito, está atirando a esmo, atingindo alvos errados e revelando sua espantosa ignorância sobre a história e a realidade social e linguística do Brasil.
Pior ainda: jornalistas respeitáveis e até mesmo um conhecido gramático manifestam indignação claramente apenas por ouvir dizer e não com base numa análise criteriosa do material. Não podemos senão lamentar essa irresponsável atitude de pessoas que têm a obrigação, ao ocupar o espaço público, de seguir comezinhos princípios éticos.
Se o fizessem, veriam facilmente que os autores do livro apenas seguem o que recomenda o bom senso e a boa pedagogia da língua. O assunto é a concordância verbal e nominal – que, como sabemos – se realiza, no português do Brasil, de modo diferente de variedade para variedade da língua. Há significativas diferenças entre as variedades ditas populares e as variedades ditas cultas. Essas diferenças decorrem do modo clivado como se constituiu a sociedade brasileira. Ou seja, a divisão linguística reflete a divisão econômica e social em que se assentou nossa sociedade, divisão que não fomos ainda capazes de superar ou, ao menos, de diminuir substancialmente.
Muitos de nós acreditamos que a educação é um dos meios de que dispomos para enfrentar essa nossa profunda clivagem econômica e social. Nós linguistas, por exemplo, defendemos que o ensino de português crie condições para que todos os alunos alcancem o domínio das variedades cultas, variedades com que se expressa o mundo da cultura letrada, do saber escolarizado.
Para alcançar esse objetivo, é indispensável informar os alunos sobre o quadro da variação linguística existente no nosso país e, a partir da comparação das variedades, mostrar-lhes os pontos críticos que as diferenciam e chamar sua atenção para os efeitos sociais corrosivos de algumas dessas diferenças (o preconceito linguístico – tão arraigado ainda na nossa sociedade e que redunda em atitudes de intolerância, humilhação, exclusão e violência simbólica com base na variedade linguística que se fala). Por fim, é preciso destacar a importância de conhecer essa realidade tanto para dominar as variedades cultas, quanto para participar da luta contra o preconceito linguístico.
É isso – e apenas isso – que fazem os autores do livro. E não somente os autores desse livro, mas dos livros de português que têm sido escritos já há algum tempo. Subjacentes a essa direção pedagógica estão os estudos descritivos da realidade histórica e social da língua portuguesa do Brasil, estudos que têm desvelado, com cada vez mais detalhes, a nossa complexa cara linguística.
Desses estudos nasceu naturalmente a discussão sobre que caminhos precisamos tomar para adequar o ensino da língua a essa realidade de modo a não reforçar (como fazia a pedagogia tradicional) o nosso apartheid social e linguístico, mas sim favorecer a democratização do domínio das variedades cultas e da cultura letrada, domínio que foi sistematicamente negado a expressivos segmentos de nossa sociedade ao longo da nossa história.
O desvelamento da nossa cara linguística, porém, tem incomodado profundamente certa intelectualidade. A complexidade da realidade parece que lhes tira o ar e o chão. Preferem, então, apegar-se dogmática e raivosamente à simplicidade dos juízos absolutos do certo e do errado. Mostram-se assim pouco preparados para o debate franco, aberto e desapaixonado que essas questões exigem.
Carlos Alberto Faraco, linguista, foi professor de Português e reitor da UFPR.
Disponível em http://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/conteudo.phtml?tl=1&id=1127433&tit=Polemica-vazia. Acesso em: 22.05.2011
quarta-feira, 11 de maio de 2011
Conto de Escola - Machado de Assis
Esse é um dos textos de Machado de Assis de que mais gosto!!!!
A ESCOLA era na Rua do Costa, um sobradinho de grade de pau. O ano era de 1840. Naquele dia — uma segunda-feira, do mês de maio — deixei-me estar alguns instantes na Rua da Princesa a ver onde iria brincar a manhã.
Hesitava entre o morro de S. Diogo e o Campo de Sant’Ana, que não era então esse parque atual, construção de gentleman, mas um espaço rústico, mais ou menos infinito, alastrado de lavadeiras, capim e burros soltos.
Morro ou campo? Tal era o problema. De repente disse comigo que o melhor era a escola. E guiei para a escola. Aqui vai a razão.
Na semana anterior tinha feito dous suetos, e, descoberto o caso, recebi o pagamento das mãos de meu pai, que me deu uma sova de vara de marmeleiro. As sovas de meu pai doíam por muito tempo. Era um velho empregado do Arsenal de Guerra, ríspido e intolerante. Sonhava para mim
uma grande posição comercial, e tinha ânsia de me ver com os elementos mercantis, ler, escrever e contar, para me meter de caixeiro. Citava-me nomes de capitalistas que tinham começado ao balcão. Ora, foi a lembrança do último castigo que me levou naquela manhã para o colégio. Não era um menino de virtudes.
Subi a escada com cautela, para não ser ouvido do mestre, e cheguei a tempo; ele entrou na sala três ou quatro minutos depois. Entrou com o andar manso do costume, em chinelas de cordovão, com a jaqueta de brim lavada e desbotada, calça branca e tesa e grande colarinho caído. Chamava-se Policarpo e tinha perto de cinqüenta anos ou mais. Uma vez sentado, extraiu da jaqueta a boceta de rapé e o lenço vermelho, pô-los na gaveta; depois relanceou os olhos pela sala. Os meninos, que se conservaram de pé durante a entrada dele, tornaram a sentar-se. Tudo estava em ordem; começaram os trabalhos.
— Seu Pilar, eu preciso falar com você, disse-me baixinho o filho do mestre.
Chamava-se Raimundo este pequeno, e era mole, aplicado, inteligência tarda. Raimundo gastava duas horas em reter aquilo que a outros levava apenas trinta ou cinqüenta minutos; vencia com o tempo o que não podia fazer logo com o cérebro. Reunia a isso um grande medo ao pai. Era uma
criança fina, pálida, cara doente; raramente estava alegre. Entrava na escola depois do pai e retirava-se antes. O mestre era mais severo com ele do que conosco.
— O que é que você quer?
— Logo, respondeu ele com voz trêmula.
Começou a lição de escrita. Custa-me dizer que eu era dos mais adiantados da escola; mas era. Não digo também que era dos mais inteligentes, por um escrúpulo fácil de entender e de excelente efeito no estilo, mas não tenho outra convicção. Note-se que não era pálido nem mofino: tinha boas cores e músculos de ferro. Na lição de escrita, por exemplo, acabava sempre antes de todos, mas deixava-me estar a recortar narizes no papel ou na tábua, ocupação sem nobreza nem espiritualidade, mas em todo caso ingênua. Naquele dia foi a mesma coisa; tão depressa acabei, como entrei a reproduzir o nariz do mestre, dando-lhe cinco ou seis atitudes diferentes, das quais recordo a interrogativa, a admirativa, a dubitativa e a cogitativa. Não lhes punha esses nomes, pobre estudante de primeiras letras que era; mas, instintivamente, dava-lhes essas expressões.
Os outros foram acabando; não tive remédio senão acabar também, entregar a escrita, e voltar para o meu lugar.
Com franqueza, estava arrependido de ter vindo. Agora que ficava preso, ardia por andar lá fora, e recapitulava o campo e o morro, pensava nos outros meninos vadios, o Chico Telha, o Américo, o Carlos das Escadinhas, a fina flor do bairro e do gênero humano. Para cúmulo de desespero, vi
através das vidraças da escola, no claro azul do céu, por cima do morro do Livramento, um papagaio de papel, alto e largo, preso de uma corda imensa, que bojava no ar, uma cousa soberba. E eu na escola, sentado, pernas unidas, com o livro de leitura e a gramática nos joelhos.
— Fui um bobo em vir, disse eu ao Raimundo.
— Não diga isso, murmurou ele.
Olhei para ele; estava mais pálido. Então lembrou-me outra vez que queria pedir-me alguma cousa, e perguntei-lhe o que era. Raimundo estremeceu de novo, e, rápido, disse-me que esperasse um pouco; era uma coisa particular.
— Seu Pilar… murmurou ele daí a alguns minutos.
— Que é?
— Você…
— Você quê?
Ele deitou os olhos ao pai, e depois a alguns outros meninos. Um destes, o Curvelo, olhava para ele, desconfiado, e o Raimundo, notando-me essa circunstância, pediu alguns minutos mais de espera. Confesso que começava a arder de curiosidade. Olhei para o Curvelo, e vi que parecia atento; podia ser uma simples curiosidade vaga, natural indiscrição; mas podia ser também alguma cousa entre eles. Esse Curvelo era um pouco levado do diabo. Tinha onze anos, era mais velho que nós.
Que me quereria o Raimundo? Continuei inquieto, remexendo-me muito, falando-lhe baixo, com instância, que me dissesse o que era, que ninguém cuidava dele nem de mim. Ou então, de tarde…
— De tarde, não, interrompeu-me ele; não pode ser de tarde.
— Então agora…
— Papai está olhando.
Na verdade, o mestre fitava-nos. Como era mais severo para o filho, buscava-o muitas vezes com os olhos, para trazê-lo mais aperreado. Mas nós também éramos finos; metemos o nariz no livro, e continuamos a ler. Afinal cansou e tomou as folhas do dia, três ou quatro, que ele lia devagar, mastigando as idéias e as paixões. Não esqueçam que estávamos então no fim da Regência, e que era grande a agitação pública. Policarpo tinha decerto algum partido, mas nunca pude averiguar esse ponto. O pior que ele podia ter, para nós, era a palmatória. E essa lá estava, pendurada do portal da janela, à direita, com os seus cinco olhos do diabo. Era só levantar a mão, despendurá-la e brandi-la, com a força do costume, que não era pouca. E daí, pode ser que alguma vez as paixões políticas dominassem nele a ponto de poupar-nos uma ou outra correção. Naquele dia, ao menos, pareceu-me que lia as folhas com muito interesse; levantava os olhos de quando em quando, ou tomava uma pitada, mas tornava logo aos jornais, e lia a valer.
No fim de algum tempo — dez ou doze minutos — Raimundo meteu a mão no bolso das calças e olhou para mim.
— Sabe o que tenho aqui?
— Não.
— Uma pratinha que mamãe me deu.
— Hoje?
— Não, no outro dia, quando fiz anos…
— Pratinha de verdade?
— De verdade.
Tirou-a vagarosamente, e mostrou-me de longe. Era uma moeda do tempo do rei, cuido que doze vinténs ou dous tostões, não me lembro; mas era uma moeda, e tal moeda que me fez pular o sangue no coração. Raimundo revolveu em mim o olhar pálido; depois perguntou-me se a queria para mim.
Respondi-lhe que estava caçoando, mas ele jurou que não.
— Mas então você fica sem ela?
— Mamãe depois me arranja outra. Ela tem muitas que vovô lhe deixou, numa caixinha; algumas são de ouro. Você quer esta?
Minha resposta foi estender-lhe a mão disfarçadamente, depois de olhar para a mesa do mestre. Raimundo recuou a mão dele e deu à boca um gesto amarelo, que queria sorrir. Em seguida propôs-me um negócio, uma troca de serviços; ele me daria a moeda, eu lhe explicaria um ponto da lição de sintaxe. Não conseguira reter nada do livro, e estava com medo do pai. E concluía a proposta esfregando a pratinha nos joelhos…
Tive uma sensação esquisita. Não é que eu possuísse da virtude uma idéia antes própria de homem; não é também que não fosse fácil em empregar uma ou outra mentira de criança. Sabíamos ambos enganar ao mestre. A novidade estava nos termos da proposta, na troca de lição e dinheiro, compra franca, positiva, toma lá, dá cá; tal foi a causa da sensação. Fiquei a olhar
para ele, à toa, sem poder dizer nada.
Compreende-se que o ponto da lição era difícil, e que o Raimundo, não o tendo aprendido, recorria a um meio que lhe pareceu útil para escapar ao castigo do pai. Se me tem pedido a cousa por favor, alcançá-la-ia do mesmo modo, como de outras vezes, mas parece que era lembrança das outras vezes, o medo de achar a minha vontade frouxa ou cansada, e não aprender como queria, — e pode ser mesmo que em alguma ocasião lhe tivesse ensinado mal, — parece que tal foi a causa da proposta. O pobre-diabo contava com o favor, — mas queria assegurar-lhe a eficácia, e daí recorreu à moeda que a mãe lhe dera e que ele guardava como relíquia ou brinquedo; pegou dela e veio esfregá-la nos joelhos, à minha vista, como uma tentação… Realmente, era bonita, fina, branca, muito branca; e para mim, que só trazia cobre no bolso, quando trazia alguma cousa, um cobre feio, grosso, azinhavrado…
Não queria recebê-la, e custava-me recusá-la. Olhei para o mestre, que continuava a ler, com tal interesse, que lhe pingava o rapé do nariz. — Ande, tome, dizia-me baixinho o filho. E a pratinha fuzilava-lhe entre os dedos, como se fora diamante… Em verdade, se o mestre não visse nada, que mal havia? E ele não podia ver nada, estava agarrado aos jornais, lendo com
fogo, com indignação…
— Tome, tome…
Relancei os olhos pela sala, e dei com os do Curvelo em nós; disse ao Raimundo que esperasse. Pareceu-me que o outro nos observava, então dissimulei; mas daí a pouco deitei-lhe outra vez o olho, e — tanto se ilude a vontade! — não lhe vi mais nada. Então cobrei ânimo.
— Dê cá…
Raimundo deu-me a pratinha, sorrateiramente; eu meti-a na algibeira das calças, com um alvoroço que não posso definir. Cá estava ela comigo, pegadinha à perna. Restava prestar o serviço, ensinar a lição e não me demorei em fazê-lo, nem o fiz mal, ao menos conscientemente; passava-lhe a explicação em um retalho de papel que ele recebeu com cautela e cheio de atenção. Sentia-se que despendia um esforço cinco ou seis vezes maior para aprender um nada; mas contanto que ele escapasse ao castigo, tudo iria bem.
De repente, olhei para o Curvelo e estremeci; tinha os olhos em nós, com um riso que me pareceu mau. Disfarcei; mas daí a pouco, voltando-me outra vez para ele, achei-o do mesmo modo, com o mesmo ar, acrescendo que entrava a remexer-se no banco, impaciente. Sorri para ele e ele não sorriu; ao contrário, franziu a testa, o que lhe deu um aspecto ameaçador. O coração bateu-me muito.
— Precisamos muito cuidado, disse eu ao Raimundo.
— Diga-me isto só, murmurou ele.
Fiz-lhe sinal que se calasse; mas ele instava, e a moeda, cá no bolso, lembrava-me o contrato feito. Ensinei-lhe o que era, disfarçando muito; depois, tornei a olhar para o Curvelo, que me pareceu ainda mais inquieto, e o riso, dantes mau, estava agora pior. Não é preciso dizer que também eu ficara em brasas, ansioso que a aula acabasse; mas nem o relógio andava como das outras vezes, nem o mestre fazia caso da escola; este lia os jornais, artigo por artigo, pontuando-os com exclamações, com gestos de ombros, com uma ou duas pancadinhas na mesa. E lá fora, no céu azul, por cima do morro, o mesmo eterno papagaio, guinando a um lado e outro, como se me chamasse a ir ter com ele. Imaginei-me ali, com os livros e a pedra embaixo da mangueira, e a pratinha no bolso das calças, que eu não daria a ninguém, nem que me serrassem; guardá-la-ia em casa, dizendo a mamãe que a tinha achado na rua. Para que me não fugisse, ia-a apalpando, roçando-lhe os dedos pelo cunho, quase lendo pelo tato a inscrição, com uma grande
vontade de espiá-la.
— Oh! seu Pilar! bradou o mestre com voz de trovão.
Estremeci como se acordasse de um sonho, e levantei-me às pressas. Dei com o mestre, olhando para mim, cara fechada, jornais dispersos, e ao pé da mesa, em pé, o Curvelo. Pareceu-me adivinhar tudo.
— Venha cá! bradou o mestre.
Fui e parei diante dele. Ele enterrou-me pela consciência dentro um par de olhos pontudos; depois chamou o filho. Toda a escola tinha parado; ninguém mais lia, ninguém fazia um só movimento. Eu, conquanto não tirasse os olhos do mestre, sentia no ar a curiosidade e o pavor de todos.
— Então o senhor recebe dinheiro para ensinar as lições aos outros? disseme
o Policarpo.
— Eu…
— Dê cá a moeda que este seu colega lhe deu! clamou.
Não obedeci logo, mas não pude negar nada. Continuei a tremer muito.
Policarpo bradou de novo que lhe desse a moeda, e eu não resisti mais, meti a mão no bolso, vagarosamente, saquei-a e entreguei-lha. Ele examinou-a de um e outro lado, bufando de raiva; depois estendeu o braço e atirou-a à rua.
E então disse-nos uma porção de cousas duras, que tanto o filho como eu acabávamos de praticar uma ação feia, indigna, baixa, uma vilania, e para emenda e exemplo íamos ser castigados.
Aqui pegou da palmatória.
— Perdão, seu mestre… solucei eu.
— Não há perdão! Dê cá a mão! Dê cá! Vamos! Sem-vergonha! Dê cá a mão!
— Mas, seu mestre…
— Olhe que é pior!
Estendi-lhe a mão direita, depois a esquerda, e fui recebendo os bolos uns por cima dos outros, até completar doze, que me deixaram as palmas vermelhas e inchadas. Chegou a vez do filho, e foi a mesma cousa; não lhe poupou nada, dois, quatro, oito, doze bolos. Acabou, pregou-nos outro
sermão. Chamou-nos sem-vergonhas, desaforados, e jurou que se repetíssemos o negócio apanharíamos tal castigo que nos havia de lembrar para todo o sempre. E exclamava: Porcalhões! tratantes! faltos de brio!
Eu, por mim, tinha a cara no chão. Não ousava fitar ninguém, sentia todos os olhos em nós. Recolhi-me ao banco, soluçando, fustigado pelos impropérios do mestre. Na sala arquejava o terror; posso dizer que naquele dia ninguém faria igual negócio. Creio que o próprio Curvelo enfiara de medo. Não olhei logo para ele, cá dentro de mim jurava quebrar-lhe a cara, na rua, logo que saíssemos, tão certo como três e dous serem cinco.
Daí a algum tempo olhei para ele; ele também olhava para mim, mas desviou a cara, e penso que empalideceu. Compôs-se e entrou a ler em voz alta; estava com medo. Começou a variar de atitude, agitando-se à toa, coçando os joelhos, o nariz. Pode ser até que se arrependesse de nos ter denunciado; e na verdade, por que denunciar-nos? Em que é que lhe tirávamos alguma cousa?
” Tu me pagas! tão duro como osso!” dizia eu comigo.
Veio a hora de sair, e saímos; ele foi adiante, apressado, e eu não queria brigar ali mesmo, na Rua do Costa, perto do colégio; havia de ser na Rua larga São Joaquim. Quando, porém, cheguei à esquina, já o não vi; provavelmente escondera-se em algum corredor ou loja; entrei numa botica,
espiei em outras casas, perguntei por ele a algumas pessoas, ninguém me deu notícia. De tarde faltou à escola.
Em casa não contei nada, é claro; mas para explicar as mãos inchadas, menti a minha mãe, disse-lhe que não tinha sabido a lição. Dormi nessa noite, mandando ao diabo os dous meninos, tanto o da denúncia como o da moeda. E sonhei com a moeda; sonhei que, ao tornar à escola, no dia seguinte, dera com ela na rua, e a apanhara, sem medo nem escrúpulos…
De manhã, acordei cedo. A idéia de ir procurar a moeda fez-me vestir depressa. O dia estava esplêndido, um dia de maio, sol magnífico, ar brando, sem contar as calças novas que minha mãe me deu, por sinal que eram amarelas. Tudo isso, e a pratinha… Saí de casa, como se fosse trepar ao trono de Jerusalém. Piquei o passo para que ninguém chegasse antes de mim à escola; ainda assim não andei tão depressa que amarrotasse as calças. Não, que elas eram bonitas! Mirava-as, fugia aos encontros, ao lixo da rua…
Na rua encontrei uma companhia do batalhão de fuzileiros, tambor à frente, rufando. Não podia ouvir isto quieto. Os soldados vinham batendo o pé rápido, igual, direita, esquerda, ao som do rufo; vinham, passaram por mim, e foram andando. Eu senti uma comichão nos pés, e tive ímpeto de ir atrás deles. Já lhes disse: o dia estava lindo, e depois o tambor… Olhei para um e outro lado; afinal, não sei como foi, entrei a marchar também ao som do rufo, creio que cantarolando alguma cousa:
Rato na casaca… Não fui à escola, acompanhei os fuzileiros, depois enfiei pela Saúde, e acabei a manhã na Praia da Gamboa. Voltei para casa com as calças enxovalhadas, sem pratinha no bolso nem ressentimento na alma. E contudo a pratinha era bonita e foram eles, Raimundo e Curvelo, que me deram o primeiro conhecimento, um da corrupção, outro da delação; mas o
diabo do tambor…
FIM
Fonte:
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000268.pdf
Somos porco-espinho, somos raposa
Na antiga parábola grega há uma raposa que todos os dias tenta intercetar o caminho miudinho e reto que o porco-espinho percorre. Como sabemos, as raposas, além da sua beleza e rapidez, têm a proverbial astúcia que faz delas estrategas reconhecidas no mundo animal. Esta cercava todos os dias a toca do porco-espinho como quem estivesse simplesmente em passeio, e quando menos se esperava irrompia, num arrebatamento aparentemente vitorioso. O porco-espinho, porém, agia em sentido contrário. Com o seu movimento deselegante e rotineiro, dir-se-ia que optava viver em função de uma coisa só, muito sua e muito doméstica. Mas a verdade é que não deixava de fazer uma defesa consistente do seu domínio. Sempre que a raposa saltava para surpreendê-lo, o porco-espinho enrolava-se todo, tornando-se numa impenetrável bola bélica, cheia de pontas aguçadas em todas as direções. Perante isso a raposa tinha de recuar à floresta para a preparação de novos esquemas. A moral da parábola é a seguinte: «A raposa sabe muitas coisas, mas o porco-espinho sabe uma coisa muito importante».
De que é que fala esta parábola? Talvez não do elogio da raposa por contraposição ao porco-espinho ou vice-versa. Talvez fale simplesmente das diferenças, tão naturais quanto misteriosas, que reconhecemos em nós próprios e nos outros. Há quem tenha como dom saber muitas coisas. Há quem tenha como missão saber bem uma coisa só.
É interessante que o filósofo Isaiah Berlin parta desta história para dizer que existem duas categorias de pessoas: as que estão próximas das características da raposa e as que são mais do tipo porco-espinho. Ambas têm, como seria de esperar, grandes qualidades e outras tantas limitações. A raposa olha o mundo na sua complexidade e é capaz de se mover numa pluralidade de níveis, como se estes fossem simultâneos. Interessa-se por muitas coisas, rodeia, fareja, espreita: é sonhadora e brilhante, mesmo correndo o risco da dispersão. O porco-espinho vive sob o signo da simplificação e da visão unificada. De um grande enredo, o porco-espinho escolhe retirar uma ideia apenas, que transforma depressa num princípio organizador de toda a realidade. A raposa é polifónica e bilingue, uma espécie de catalisador do novo, ainda que à custa de incuráveis interrogativas e dilemas. O porco-espinho desconfia de tudo o que não se relaciona de forma direta com a ideia-chave que o faz correr, valoriza sobretudo a convergência, a atenção e o aprofundamento. A raposa não suporta ter diante de si uma fila de dias iguais, enquanto que o porco-espinho não deseja outra coisa. O porco-espinho é mono temático, mas completamente consequente. Define o essencial e faz por ignorar tudo o resto. A raposa segue todos os trilhos que pode, mas arrisca mais vezes a inutilidade.
É interessante que o filósofo Isaiah Berlin parta desta história para dizer que existem duas categorias de pessoas: as que estão próximas das características da raposa e as que são mais do tipo porco-espinho. Ambas têm, como seria de esperar, grandes qualidades e outras tantas limitações. A raposa olha o mundo na sua complexidade e é capaz de se mover numa pluralidade de níveis, como se estes fossem simultâneos. Interessa-se por muitas coisas, rodeia, fareja, espreita: é sonhadora e brilhante, mesmo correndo o risco da dispersão. O porco-espinho vive sob o signo da simplificação e da visão unificada. De um grande enredo, o porco-espinho escolhe retirar uma ideia apenas, que transforma depressa num princípio organizador de toda a realidade. A raposa é polifónica e bilingue, uma espécie de catalisador do novo, ainda que à custa de incuráveis interrogativas e dilemas. O porco-espinho desconfia de tudo o que não se relaciona de forma direta com a ideia-chave que o faz correr, valoriza sobretudo a convergência, a atenção e o aprofundamento. A raposa não suporta ter diante de si uma fila de dias iguais, enquanto que o porco-espinho não deseja outra coisa. O porco-espinho é mono temático, mas completamente consequente. Define o essencial e faz por ignorar tudo o resto. A raposa segue todos os trilhos que pode, mas arrisca mais vezes a inutilidade.
A propósito deste debate, apetece retomar o poema de Alberto Caeiro:
«A espantosa realidade das coisas
É a minha descoberta de todos os dias.
Cada coisa é o que é,
E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra,
E quanto isso me basta…».
José Tolentino Mendonça
In Diário de Notícias (Madeira), 09.05.11
segunda-feira, 9 de maio de 2011
MÃE NÃO TEM FIM
Li esta crônica no blog de Fabricio Carpinejar. Achei-a muito linda. Confiram!
Minha mãe não tem igual. Eu não dormia fácil de pequeno, com aquele resmungo de cólica. Minha mãe me carregava no colo, me segurava pela barriga, e não me aquietava. Recusava bico, leite, conforto espiritual. Desdenhava da cama, do móbile, do carrinho, do andador. Aflita, ela pegava o carro e me levava para passear de madrugada. Na terceira quadra, me entregava ao sono. O carro foi meu segundo ventre. Até hoje quando sento no banco de trás, eu fecho docemente as pálpebras. É o único lugar em que fico em silêncio. Não me apresentei: sou o filho preferido de minha mãe. Meus irmãos também acham que são os filhos preferidos. Ela criou todo filho como se fosse único. Para cada um separava uma cantiga de ninar e um segredo. "Não conta para ninguém, tá?", ela me alertou. Como eu não falei para meus irmãos, nem meus irmãos falaram para mim, ninguém sabe qual o segredo que é meu, qual o segredo que é deles. Vários segredos juntos formam um mistério. É um problema quando estamos reunidos. Eu acho que ela cozinhou para mim, os outros também acham. É um problema quando estamos longe. Eu acho que ela só ligou para mim, os outros também acham. Ela reclama imensamente de mim, nunca está satisfeita com o que eu faço. Penso que somente reclama de mim, reclama da família inteira na mesma proporção. Assim como divide um doce de forma igual. Assim como divide o pão em fatias gêmeas. Mãe não tem dedos, tem régua. Reclamar é sua lista de chamada. Reclamar é um jeito disfarçado de sentir saudade. No fundo, torce para que eu me distraia de uma de suas regras. Ela aponta a louça para lavar, e logo limpa a pia. Ela pede uma carona, vou me arrumar, já tomou um táxi. Nunca pede duas vezes. Ou ela é rápida demais ou eu demoro. Na verdade, ela é rápida demais e eu demoro. Mãe é gincana. É agora ou nunca. Nem invente de responder nunca para ela. Sua reclamação tem virtude, sua reclamação é um quarto privativo, reclama só para mim. Para os demais, me torna muito melhor do que sou. Não me elogia para mim porque não quer me estragar. Tem esperança de que não me estraguei. Ela vibra quando encontra algo que não fiz. Inventa necessidades para ser reconhecida. Atrás da mínima palavra, pergunta se eu a amo. Ela escreve isso com os olhos, eu leio isso em seus lábios. O que a mãe mais teme é ser esquecida. Não tem como: mãe é a memória antes da memória. É a nossa primeira amizade com o mundo. O que parece chatice é cuidado. Cuidado excessivo. Cuidado a qualquer momento. Cuidado a qualquer hora, ao atravessar a rua, ao atravessar um namoro. Para o nosso bem, repete conselhos desde a infância. Para o nosso bem. Repetir o amor é aperfeiçoá-lo. Mãe não cansa de nos buscar na escola, mesmo quando não há mais escola. Mãe não cansa de controlar nossa febre, mesmo quando não há febre. Mãe não cansa de nos perdoar, mesmo quando não há pecado. Mãe não cansa de nos esperar da festa, mesmo quando já moramos longe. Mãe se assusta por nada e se encoraja do nada. Entende que o nosso não é um sim, que o nosso sim é talvez. Avisa para pegar o último bolinho, o último bife, em seguida arruma uma marmita para o lanche da tarde. Mãe tem uma coleção de guarda-chuvas prevendo que perderemos o próximo. Está sempre com a linha encilhada na agulha e caixinha de botões a postos. Conserva nosso quarto arrumado como se houvesse uma segunda infância. Mãe passa fome no lugar do filho, passa sede no lugar do filho, passa a vida guardando lugar ao filho. Mãe é assim, um exagero incansável. Adora chorar de felicidade nos observando dormir. Minha mãe chorava quando finalmente descansava no carro. Ela sussurrou o segredo, disse que eu era seu filho favorito. Não fofoquei para meus irmãos, não pretendia machucá-los. Eles também não me contaram que eram os favoritos dela.
Minha mãe não tem igual. Eu não dormia fácil de pequeno, com aquele resmungo de cólica. Minha mãe me carregava no colo, me segurava pela barriga, e não me aquietava. Recusava bico, leite, conforto espiritual. Desdenhava da cama, do móbile, do carrinho, do andador. Aflita, ela pegava o carro e me levava para passear de madrugada. Na terceira quadra, me entregava ao sono. O carro foi meu segundo ventre. Até hoje quando sento no banco de trás, eu fecho docemente as pálpebras. É o único lugar em que fico em silêncio. Não me apresentei: sou o filho preferido de minha mãe. Meus irmãos também acham que são os filhos preferidos. Ela criou todo filho como se fosse único. Para cada um separava uma cantiga de ninar e um segredo. "Não conta para ninguém, tá?", ela me alertou. Como eu não falei para meus irmãos, nem meus irmãos falaram para mim, ninguém sabe qual o segredo que é meu, qual o segredo que é deles. Vários segredos juntos formam um mistério. É um problema quando estamos reunidos. Eu acho que ela cozinhou para mim, os outros também acham. É um problema quando estamos longe. Eu acho que ela só ligou para mim, os outros também acham. Ela reclama imensamente de mim, nunca está satisfeita com o que eu faço. Penso que somente reclama de mim, reclama da família inteira na mesma proporção. Assim como divide um doce de forma igual. Assim como divide o pão em fatias gêmeas. Mãe não tem dedos, tem régua. Reclamar é sua lista de chamada. Reclamar é um jeito disfarçado de sentir saudade. No fundo, torce para que eu me distraia de uma de suas regras. Ela aponta a louça para lavar, e logo limpa a pia. Ela pede uma carona, vou me arrumar, já tomou um táxi. Nunca pede duas vezes. Ou ela é rápida demais ou eu demoro. Na verdade, ela é rápida demais e eu demoro. Mãe é gincana. É agora ou nunca. Nem invente de responder nunca para ela. Sua reclamação tem virtude, sua reclamação é um quarto privativo, reclama só para mim. Para os demais, me torna muito melhor do que sou. Não me elogia para mim porque não quer me estragar. Tem esperança de que não me estraguei. Ela vibra quando encontra algo que não fiz. Inventa necessidades para ser reconhecida. Atrás da mínima palavra, pergunta se eu a amo. Ela escreve isso com os olhos, eu leio isso em seus lábios. O que a mãe mais teme é ser esquecida. Não tem como: mãe é a memória antes da memória. É a nossa primeira amizade com o mundo. O que parece chatice é cuidado. Cuidado excessivo. Cuidado a qualquer momento. Cuidado a qualquer hora, ao atravessar a rua, ao atravessar um namoro. Para o nosso bem, repete conselhos desde a infância. Para o nosso bem. Repetir o amor é aperfeiçoá-lo. Mãe não cansa de nos buscar na escola, mesmo quando não há mais escola. Mãe não cansa de controlar nossa febre, mesmo quando não há febre. Mãe não cansa de nos perdoar, mesmo quando não há pecado. Mãe não cansa de nos esperar da festa, mesmo quando já moramos longe. Mãe se assusta por nada e se encoraja do nada. Entende que o nosso não é um sim, que o nosso sim é talvez. Avisa para pegar o último bolinho, o último bife, em seguida arruma uma marmita para o lanche da tarde. Mãe tem uma coleção de guarda-chuvas prevendo que perderemos o próximo. Está sempre com a linha encilhada na agulha e caixinha de botões a postos. Conserva nosso quarto arrumado como se houvesse uma segunda infância. Mãe passa fome no lugar do filho, passa sede no lugar do filho, passa a vida guardando lugar ao filho. Mãe é assim, um exagero incansável. Adora chorar de felicidade nos observando dormir. Minha mãe chorava quando finalmente descansava no carro. Ela sussurrou o segredo, disse que eu era seu filho favorito. Não fofoquei para meus irmãos, não pretendia machucá-los. Eles também não me contaram que eram os favoritos dela.
É O INÍCIO DE TUDO.
fonte: http://carpinejar.blogspot.com/2011/05/mae-nao-tem-fim.html
sábado, 9 de abril de 2011
Ceel Informa: Nova inserção no canal de vídeos: Fala e Escrita
Muito bons esses vídeos sobre Fala e Escrita.
Ceel Informa: Nova inserção no canal de vídeos: Fala e Escrita: "Fala e Escrita. Participação: Luiz Antonio Marcuschi e Angela Paiva Dionisio Links: Parte 1: http://www.youtube.com/wat..."
Ceel Informa: Nova inserção no canal de vídeos: Fala e Escrita: "Fala e Escrita. Participação: Luiz Antonio Marcuschi e Angela Paiva Dionisio Links: Parte 1: http://www.youtube.com/wat..."
terça-feira, 1 de março de 2011
A INSÔNIA MÁGICA DE SCLIAR
A morte do escritor Moacyr Scliar significa uma grande perda para mim, pois gosto muito dos seus textos. Sempre acompanhava suas crônicas na Folha de São Paulo. Eram sempre muito divertidas. Em sua homenagem, publico essa crônica do Fabricio Carpinejar.
Mágico é aquele que revela o segredo e todos continuam não entendendo o que ele fez.
Falo de Moacyr Scliar, autor de mais de setenta livros, entre romance, crônica, conto, literatura infantil e ensaio. Morreu neste domingo (27) à 1h, por falência múltipla de órgãos no Hospital de Clínicas de Porto Alegre.
Foi o único ilusionista que me convenceu desde a infância. Incompreensível onde arrumava tempo para escrever e manter colunas na revista Veja e nos jornais Zero Hora e Folha de São Paulo.
Confessava que tinha disciplina e acordava cedo, mas não tinha como acreditar, ele mantinha um exército dentro de si, um exército de um homem só domando centauros, produzindo miragens, dobrando os dias, duplicando a claridade da página.
"Não se dorme dentro do livro. São turnos ininterruptos de luz", brincou uma vez comigo.
"Então, o livro é o único lugar de Porto Alegre que fica aberto 24h", respondi, e ele riu da minha conclusão, eu queria ter aqueles olhos azuis imensos e sobrancelhas quase transparentes para poder rir um dia.
Scliar era ubíquo, estava em dois lugares ao mesmo tempo, é certo que no coração do leitor. Suas ilusões mais conhecidas envolviam aparecimentos súbitos, leitura da mente, e tudo o que desafiasse a explicação racional com seus personagens fantásticos, sequiosos pela verdade como num Antigo Testamento.
Era médico para despistar seus poderes ocultos. Colocou, inclusive, o Cruzeiro de Porto Alegre na semifinal do Gauchão (partida decisiva é hoje), como um dos 19 torcedores do time.
Eu não conhecia no mundo alguém mais gentil, mais dedicado. As costas sempre eretas de nadador, o passo rápido, o mundo se apequenava com sua ligeireza: mandava cartas, telefonava para agradecer uma referência, antecipava notícias, não esquecia coisa alguma.
Foi o primeiro a me saudar na literatura em minha estreia com As Solas do Sol. Meu primeiro comentário crítico no jornal é dele: Carpe Diem. Carpe Carpinejar. Minha pasta de resenhas começa com ele.
Acentuava traços filiais na hora de contar histórias. Acentuava traços paternos na hora de repreender. Ele me enxergava fumando no saguão de um hotel e logo mandava:
- Põe no chão, põe logo no chão, antes que vá primeiro do que o cigarro.
A ameaça escondia uma preocupação, um conselho de amor. Eu apaguei o vício, ele nunca apagou suas virtudes.
Ele, ele, ele, cadê ele? Resta uma armada de ausências pelo Brasil. Não havia evento literário que não houvesse o nome de Moacyr Scliar no folder. Chegava ao Acre e ele passara por lá na noite anterior. Chegava ao Amazonas, ele aterrissaria no dia seguinte. Pulava para Pernambuco e nos encontrávamos para dividir a tapioca no café da manhã. Escolas pelo interior, universidades, bienais, Scliar, além de escrever sem parar com toda qualidade.
Mágico. Scliar era um mágico.
Choro e fico com vontade de recolher uma por uma de minhas lágrimas para não desperdiçar nada que vem de sua literatura. Ele não desperdiçou nada ao longo de 73 anos.
Disponível em:http://carpinejar.blogspot.com. Acesso em: 01.03.2011
terça-feira, 18 de janeiro de 2011
A arte de perder
Acabei de ler esse poema e simplesmente adorei. Confiram!!!!
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A arte de perder não é nenhum mistério;
tantas coisas contêm em si o acidente
de perdê-las, que perder não é nada sério.
Perca um pouquinho a cada dia. Aceite, austero,
a chave perdida, a hora gasta bestamente.
A arte de perder não é nenhum mistério.
Depois perca mais rápido, com mais critério:
lugares, nomes, a escala subseqüente
da viagem não feita. Nada disso é sério.
Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero
lembrar a perda de três casas excelentes.
A arte de perder não é nenhum mistério.
Perdi duas cidades lindas. E um império
que era meu, dois rios, e mais um continente.
tenho saudade deles. Mas não é nada sério.
— Mesmo perder você (a voz, o riso etéreo
que eu amo) não muda nada. Pois é evidente
que a arte de perder não chega a ser mistério
por muito que pareça (Escreve!) muito sério.
BISHOP, Elizabeth. O iceberg imaginário e outros poemas. Tradução de Paulo Henriques Britto. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 30
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