domingo, 19 de julho de 2009

A cigarra e a formiga: a nova versão


MOACYR SCLIAR - Folha de São Paulo

DANÇAR, A CIGARRA QUASE dançou, mas no sentido figurado. Sem nada para comer (entre as cigarras não existe o Fome Zero), ela mal conseguiu sobreviver ao longo e tenebroso inverno. Mas, felizmente, a cruel estação passou e ali estava a cigarra, desnutrida, fraca -mas viva.Viva e ressentida. Contra a formiga, obviamente. Não saía de sua cabeça o diálogo que tivera com a cruel vizinha, a quem, afoitamente, pedira ajuda. Na verdade, nem fora bem isso; pedira um empréstimo, para ser pago com os juros de mercado. Uma transação perfeitamente admissível e que a formiga teria até a obrigação de aceitar. Mas não, não aceitara, e por causa disso a pobre cigarra quase passara desta para a melhor. Sobrevivera, mas já não tinha nenhuma vontade de cantar. Poderia fazer shows em vários lugares, convites não lhe faltavam; o traumatismo emocional, porém, a impedia.

E foi então que leu a notícia sobre o maquiavelismo das formigas. Essas criaturas "traiçoeiras, egoístas e corruptas" eram, segundo respeitáveis cientistas, capazes de qualquer coisa para arranjar uma boquinha para a prole na corte (de preferência com cartão corporativo).
Recorte de jornal em punho, foi procurar a formiga, que, nesse meio tempo, inaugurara uma financeira e agora emprestava dinheiro a juros a todos os insetos da vizinhança. A cigarra teve certa dificuldade em ser admitida no estabelecimento, mas finalmente chegou à formiga. E aí, vibrando de indignação, leu-lhe a notícia e fez um verdadeiro comício: vocês, formigas, são a vergonha do reino animal, vocês não valem nada, só pensam em forrar o bolso etc.A formiga ouvia, impassível. Quando a cigarra terminou, lembrou que o inverno estava se aproximando; portanto, se a cigarra quisesse um empréstimo, seria bom fazê-lo naquele momento -a tendência dos juros futuros era, segundo todas as previsões, de alta. Se a cigarra não quisesse o empréstimo, o caso seria mesmo dançar.

Providencialmente, uma filha da formiga tinha acabado de inaugurar uma escola de dança. Ali, mediante módico pagamento, a cigarra poderia até aprender até a dançar aquele sensacional balé, "A Dança dos Juros"...

Nenhum comentário: