Publicado em 21/07/2009 – Gazeta do Povo - PR
Minha proposta herética de que textos literários brasileiros e portugueses sejam traduzidos lá e aqui provocou uma interessante reação de alguns leitores, majoritamente contra a tresloucada ideia. Volto ao tema para situar um pouco melhor meu próprio ponto de vista, que se afirmou com excessiva ligeireza. Uma leitora bem-humorada frisou que quem lê para se “sentir em casa” devia “restringir-se aos rótulos de Sucrilhos e às listas de compras do sacolão”. Certíssima, a leitora. Eu deveria ter acrescentado no meu texto que o leitor gosta de sentir-se linguisticamente em casa. É o charme de um verso como “Tinha uma pedra no meio do caminho”, por exemplo, ou de uma tradução bem feita de um autor chinês ou sueco. Uma das regras universais da boa tradução é que só se usem notas de rodapé em último caso, quando não haja mesmo uma expressão equivalente na língua do leitor. No mais, tudo pode ser o bom estranhamento que é a alma da boa literatura, desde que a língua entre autor e leitor seja comum.
Outros lembraram Raquel de Queiroz, aqui, e Saramago, lá, como exemplos de recusas indignadas a mudar o texto no outro país. Mas é uma fantasia persecutória imaginar que o texto estaria sendo violentado por algozes cruéis, censores terríveis a corromper a força “autêntica” da linguagem, como se uma tradução lá destruísse para sempre a edição original impressa no Brasil e à disposição dos brasileiros – e vice-versa. Que seja publicado em russo, em alfabeto cirílico, tudo bem – mas trocar, digamos, “Mas a minha menina está tão linda!” por “Ai que a minha cachopa está tão gira!”, nem pensar! Essa atitude tem uma raiz mais psicológica que linguística – e o resíduo de um complexo de colonizador e colonizado certamente exerce um papel nesse horror à tradução luso-brasileira. Além do visível desejo político de que falemos a mesma língua.
Claro, há aqui algumas premissas inescapáveis da ideia: falo de prosa contemporânea, não de clássicos e nem de poesia, que têm um outro registro – no caso dos clássicos, um registro único. E o pressuposto fundamental é que se trata de duas línguas hoje literariamente distintas, e não apenas de diferenças acidentais de vocabulário. Se estou errado nesse ponto, retiro toda minha argumentação. Sim, do ponto de vista instrumental, são praticamente a mesma língua (e por isso me agrada o conceito do acordo ortográfico); mas não se faz literatura viva com língua instrumental.
A propósito, antes que me confundam: o que digo aqui não tem absolutamente nada a ver com o recente projeto oficial, esse sim de claro matiz lusitano, de obrigar a tradução de “palavras estrangeiras” aprovado pela Assembleia, rematado exemplo de tolice linguística e de como a linguagem serve de argumento difuso para o sempre vivo desejo do Estado, e não só dele, de “vigiar e punir” a língua alheia.
Minha proposta herética de que textos literários brasileiros e portugueses sejam traduzidos lá e aqui provocou uma interessante reação de alguns leitores, majoritamente contra a tresloucada ideia. Volto ao tema para situar um pouco melhor meu próprio ponto de vista, que se afirmou com excessiva ligeireza. Uma leitora bem-humorada frisou que quem lê para se “sentir em casa” devia “restringir-se aos rótulos de Sucrilhos e às listas de compras do sacolão”. Certíssima, a leitora. Eu deveria ter acrescentado no meu texto que o leitor gosta de sentir-se linguisticamente em casa. É o charme de um verso como “Tinha uma pedra no meio do caminho”, por exemplo, ou de uma tradução bem feita de um autor chinês ou sueco. Uma das regras universais da boa tradução é que só se usem notas de rodapé em último caso, quando não haja mesmo uma expressão equivalente na língua do leitor. No mais, tudo pode ser o bom estranhamento que é a alma da boa literatura, desde que a língua entre autor e leitor seja comum.
Outros lembraram Raquel de Queiroz, aqui, e Saramago, lá, como exemplos de recusas indignadas a mudar o texto no outro país. Mas é uma fantasia persecutória imaginar que o texto estaria sendo violentado por algozes cruéis, censores terríveis a corromper a força “autêntica” da linguagem, como se uma tradução lá destruísse para sempre a edição original impressa no Brasil e à disposição dos brasileiros – e vice-versa. Que seja publicado em russo, em alfabeto cirílico, tudo bem – mas trocar, digamos, “Mas a minha menina está tão linda!” por “Ai que a minha cachopa está tão gira!”, nem pensar! Essa atitude tem uma raiz mais psicológica que linguística – e o resíduo de um complexo de colonizador e colonizado certamente exerce um papel nesse horror à tradução luso-brasileira. Além do visível desejo político de que falemos a mesma língua.
Claro, há aqui algumas premissas inescapáveis da ideia: falo de prosa contemporânea, não de clássicos e nem de poesia, que têm um outro registro – no caso dos clássicos, um registro único. E o pressuposto fundamental é que se trata de duas línguas hoje literariamente distintas, e não apenas de diferenças acidentais de vocabulário. Se estou errado nesse ponto, retiro toda minha argumentação. Sim, do ponto de vista instrumental, são praticamente a mesma língua (e por isso me agrada o conceito do acordo ortográfico); mas não se faz literatura viva com língua instrumental.
A propósito, antes que me confundam: o que digo aqui não tem absolutamente nada a ver com o recente projeto oficial, esse sim de claro matiz lusitano, de obrigar a tradução de “palavras estrangeiras” aprovado pela Assembleia, rematado exemplo de tolice linguística e de como a linguagem serve de argumento difuso para o sempre vivo desejo do Estado, e não só dele, de “vigiar e punir” a língua alheia.
Cristovão Tezza é escritor.
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