VEJA, Dezembro de 1941
O romancista alemão Thomas Mann, nascido em Lübeck e antigo morador de Munique, deixou seu país quando Hitler chegou ao poder, em 1933. Em 1940, Mann foi chamado a discursar aos compatriotas através da rede BBC britânica. Esta é uma das mensagens que ele transmite aos outros alemães.
A maior bênção moral que poderia ser concedida ao povo alemão é sua inclusão entre as nações subjugadas. Pois qual veredicto haveria sobre a Alemanha, e que esperanças poderiam ser depositadas nela, se os atos repulsivos que comete sob o atual regime forem cometidos voluntariamente, sob completa consciência? Na União Soviética a juventude da Alemanha, aos milhões, sangra até morrer. Enquanto isso, as quase inexauríveis forças do lado oposto crescem num mundo que queria paz, só pensava em paz, e que no início ficou impotente diante da máquina de guerra alemã.
"Se continuarem do lado de Hitler até o fim, uma vingança virá, assustadora, a todos que querem o bem do nosso país."
A Alemanha encontrará horríveis atribulações se a guerra continuar por mais um ano ou dois – e ela continuará, pois nem vocês conseguem acreditar que derrotarão a maioria da humanidade, contrária aos planos de Hitler. Alemães, não deixem chegar a esse extremo! Vocês mesmos devem derrubar o vil, indizível e degradante governo sob o qual caíram por um negro destino. Devem provar algo em que o mundo ainda se esforça para acreditar: que o nazismo e a Alemanha não são a mesma coisa. Se continuarem do lado de Hitler até o fim, uma vingança virá, assustadora, para todos os que querem o bem da Alemanha.Vejam como as nações oprimidas da Europa resistem ao mesmo inimigo que também oprime vocês! Vocês querem ser menores, mais fracos e mais covardes que os outros? Lembrem-se: as ferramentas usadas para escravizar o mundo são o produto de suas mãos, e Hitler não pode continuar sua guerra sem a ajuda de vocês. Neguem a ele suas mãos, parem de ajudá-lo! No futuro, fará uma enorme diferença se vocês mesmos eliminarem esse homem horroroso ou se isso for feito por forças externas. Apenas se vocês mesmos se libertarem terão o direito de participar da futura ordem justa e livre dos povos.
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"A Alemanha de Dürer e Bach e Goethe e Beethoven terá um fôlego histórico maior do que a atual."
Gênio alemão - Há muita controvérsia no mundo sobre se é possível diferenciar o povo alemão das forças que o dominam hoje, e sobre se a Alemanha é capaz de se integrar honestamente a uma nova e melhorada ordem das nações, baseada na paz e na justiça, que deverá emanar desta guerra. Sempre que me perguntam isso, dou a seguinte resposta. Admito que o chamado nacional-socialismo tem longas raízes na vida alemã. É uma virulenta perversão de idéias, mas não é de forma alguma estranho à velha e boa Alemanha da cultura e educação. Antes essas idéias viviam em grande estilo; eram chamadas de "romantismo" e exerciam grande fascinação no mundo. Alguém pode muito bem dizer que elas foram por água abaixo, ou que estavam fadadas a ir por água abaixo. Combinadas à notável adaptação da Alemanha à era da tecnologia, elas constituem hoje uma mistura explosiva que ameaça a civilização como um todo. De fato, a história do nacionalismo e do racismo alemães, culminando no nazismo, é uma história longa e feia. Mas confundir essa história com a história do gênio alemão em si é um pessimismo crasso, um erro que poderia ameaçar a paz. Sou bem-intencionado e patriótico o bastante para acreditar que a Alemanha que eles amam, a Alemanha de Dürer e Bach e Goethe e Beethoven, terá um fôlego histórico maior. A outra Alemanha logo ficará sem fôlego: suas atuais bufadas e acessos de cólera não devem ser confundidas com uma grande força. Ela se esgotou, ou está prestes a se esgotar, a literalmente morrer.Sobre isso a toda esperança é baseada. É baseada no fato de que o nazismo - essa realização política de idéias que há pelo menos um século e meio vem fermentando no povo alemão e em sua intelligentsia - é algo extremo e totalmente extravagante, um experimento da máxima brutalidade e imoralidade possíveis, que não pode ser celebrado ou repetido. O abandono de toda a humanidade, a investida cega contra tudo o que une e civiliza o homem, o estupro desesperado de todos os valores e bens espirituais antes estimados também pelos alemães, a ereção do estado de guerra total a serviço do mito da raça e conquista global - não é mais possível fazer isso, não é possível levar isso adiante.
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"O mundo precisa da Alemanha -mas a Alemanha, ao mesmo tempo, também precisa desse mundo."
Tradições na lama - Se esse experimento abortar, e ele abortará, o nacionalismo alemão, que é o mais perigoso que já existiu, terá se destruído. A Alemanha será forçada a se empenhar numa direção completamente diferente. O mundo precisa da Alemanha, mas a Alemanha, por sua vez, também precisa do mundo. Por não ser capaz de "germanizar" o mundo, ela precisará se assimilar nele, como a maior e melhor Alemanha sempre fez com amor e simpatia. Verá a necessidade de relançar luzes sobre tradições hoje jogadas na lama, mas não menos nacionais do que essas cuja perniciosidade se tornou tão patente. Elas tornarão muito fácil para a Alemanha se unir a um mundo com liberdade e justiça.A Alemanha será mais feliz do que nunca quando integrar um mundo unido, pacífico e livre, despolitizado pela evaporação das soberanias nacionais. Na verdade, a Alemanha é feita para um mundo assim. Porque se a política da força foi algum dia uma maldição e uma distorção da natureza para um povo, ela o foi justamente para o apolítico povo alemão. Um francês malicioso disse certa vez que, se um alemão quer ser gracioso, ele pula da janela. É o que faz, de fato - e com determinação ainda mais selvagem quando quer ser político. Para os alemães, a política da força significa a desumanização: o hitlerismo, esse espectral salto pela janela, prova isso. É ser orgulhoso de algo do qual os alemães jamais foram orgulhosos o bastante. Para nenhum outro povo o fim da política da força será um alívio tão grande, uma promoção tão grande de suas melhores, mais fortes e mais nobres qualidades. E justamente neste tipo de mundo que agora, com ilusório esforço, o povo alemão tenta manter inexistente, essas grandes qualidades serão capazes de se desenvolver com alegria.
Thomas Mann, 66 anos, é escritor. Vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 1929, é o autor de Os Buddenbrooks, A Montanha Mágica e de Morte em Veneza.
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