Marcelo Gleiser
São Paulo, domingo, 19 de julho de 2009 - Folha de São Paulo - Ciência
Talvez a confusão entre um fenômeno raro e um milagre seja inevitável, sobretudo se a pessoa for religiosa, procurando na fé respostas para questões que a ciência ainda não respondeu. Mas não deveria ser.
Na semana passada, escrevi sobre uma hipótese científica chamada "Terra Rara". Segundo ela, os avanços das ciências físicas e biológicas apontam para um fato um tanto curioso e de extrema importância: ao contrário do que supõem muitos cientistas, a Terra é um planeta raro.
Por raridade, aqui, quero dizer que nosso planeta tem uma série de propriedades que favorecem a vida e que, tomadas juntas, são bastante difíceis de serem reproduzidas em planetas e em suas luas na nossa ou em outras galáxias. Segundo a hipótese, a raridade da Terra implica na raridade de formas de vida extraterrestre complexas, ou seja, na raridade de seres multicelulares, como insetos ou mamíferos (e seus primos alienígenas).
Os autores da hipótese, Peter Ward e Donald Brownlee, não questionam se bactérias podem ser relativamente fáceis de encontrar em outros planetas e luas que tenham água líquida, química favorável e fontes de energia capazes de manter seu metabolismo.
Mas Ward e Brownlee insistem que "monstros" ou ETs inteligentes devem ser muito raros.A conclusão imediata é que, se a hipótese estiver correta -e eu acho que está, por motivos que explorarei em novo livro que será publicado em 2010-, o homem (ou melhor, os humanos) volta a ser importante. Volta porque, como sabemos, antes de Copérnico sugerir que o Sol, e não a Terra, é o centro do cosmo (ao menos o cosmo do século 16), a Terra e, consequentemente, o homem, era o centro da Criação. Esse antropocentrismo antiquado e de base religiosa não tem nada a ver com o novo antropocentrismo (humanocentrismo seria melhor) que estou propondo.
Esse esclarecimento é importante.Logo após a minha coluna da semana passada ter aparecido, recebi mensagens de vários leitores agradecendo-me por justificar sua crença de que fomos criados por Deus. Ou seja, pessoas ávidas por uma justificação científica para a sua fé em Deus veem a afirmação de que a vida complexa é rara no cosmo como prova de que deve ter surgido milagrosamente por intervenção sobrenatural.
Entendo a necessidade de pessoas quererem achar um lugar para a sua fé na descrição científica do universo.
Mas a raridade da vida complexa e de seres inteligentes não é esse lugar. O fato de um evento ser raro, ou de baixa probabilidade, não faz com que não possa ser explicado por argumentos científicos. Raridade não é milagre.
Achar uma orquídea florescendo na avenida Paulista, ver um tucano sobrevoando o aeroporto de Congonhas, ganhar na loteria, engravidar aos 44 anos ou ver a explosão de uma supernova são todos eventos raros. Nenhum deles é um milagre sobrenatural, embora possa ser tentador para alguns atribuí-los a algo inexplicável.
Essa é a diferença fundamental entre ciência e fé. Na fé, o raro é atribuído a causas sobrenaturais. Na ciência, é um fenômeno natural de pouca frequência. Se a vida complexa for rara no Universo, nós passamos a ser a exceção, não a regra. Apesar de ser tentador atribuir nossa raridade (ou a dificuldade dos vários passos evolucionários até a vida complexa) a um milagre sobrenatural, mais significativo é compreender a importância de sermos um raro acidente da Natureza.
Em vez de darmos graças a Deus por estarmos aqui, devemos tomar nosso destino em nossas mãos e fazer todo o possível para preservar a vida nesse planeta e, por que não, espalhá-la pelo Universo.
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