terça-feira, 12 de outubro de 2010

Elias Canetti



Para fazer um contraponto com o texto de Graciliano, apresento esse belíssimo texto de Elias Canetti, justamente para possibilitar uma reflexão em torno da influência paterna na vida desses dos dois grandes escritores e por caminhos completamente opostos. O primeiro foca bem a alfabetização. Já o segundo se concentra no letramento. Num temos a brutalidade; no outro temos a douçura. São os tipos humanos.


"[...]
Mas as belas conversas daquele tempo eram as que eu mantive com meu pai. Pela manhã, antes de ir para o escritório, ele vinha ao quarto das crianças e tinha palavras adequadas a cada um de nós. Ele era inteligente e divertido, e sempre inventava novas brincadeiras. Essa curta aparição era feita antes do café da manhã, que ele tomava na sala de refeições com a minha mãe, quando ainda não havia lido o jornal. Ao anoitecer, voltava com presentes para cada um de nós, e não houve um único dia em que ele voltou para casa sem nos trazer algo.
Então ficava mais tempo e fazia ginástica conosco. Do que ele mais gostava era nos sustentar, os três, de pé sobre seu braço estendido. Ele segurava os dois pequenos, mas tinha de aprender a me equilibrar, e, embora o amasse mais do que qualquer outra pessoa, sempre tinha um pouco de medo dessa parte do exercício.

Alguns meses depois do meu ingresso na escola, aconteceu algo solene e excitante que determinou toda a minha vida futura. Meu pai me trouxe um livro. Levou-me para um quarto dos fundos, onde as crianças costumavam dormir, e o explicou para mim. Tratava-se de The Arabian Nigts, As mil e Uma Noites, numa edição para crianças. Na capa havia uma ilustração colorida, creio que de Aladim com a lâmpada maravilhosa. Falou-me, de forma animadora e séria, de como era lindo ler. Leu-me uma das histórias; tão bela como esta seriam também as outras histórias do livro. Agora eu deveria tentar lê-las, e à noite eu lhe contaria o que havia lido. Quando eu acabasse de ler este livro, ele me traria outro. Não precisou dizê-lo duas vezes, e, embora na escola começasse a aprender a ler, logo me atirei sobre o maravilhoso livro, e todas as noites tinha algo para contar. Ele cumpriu sua promessa, sempre havia um novo livro e não tive que interromper minha leitura um dia sequer.

Era uma série para crianças e todos os livros tinham o mesmo formato; se diferenciavam pela ilustração colorida na capa. As letras tinham o mesmo tamanho em todos os volumes e era como se continuasse a ler sempre o mesmo livro. Como série, nunca houve outra igual. Lembro-me de todos os títulos. Depois das Mil e Uma Noites vieram os Contos de Grimm, Robinson Crusoé, As Viagens de Gulliver, Contos de Shakespeare, Dom Quixote, Dante, Gulherme Tell. Pergunto-me, agora, como foi possível adaptar Dante para crianças. Em todos os volumes havia diversas figuras coloridas, mas eu não gostava delas, pois as histórias me pareciam muito mais bonitas; nem sei mesmo se hoje eu reconheceria as figuras. Seria fácil demonstrar que quase tudo aquilo a que minha formação estava nos livros que, por amor ao meu pai, li aos sete anos de idade. De todos os personagens que depois me acompanharam para sempre, só faltava Ulisses.

Comentava com meu pai cada um dos livros que lia. Às vezes ficava tão excitado, que ele tinha de me acalmar. Mas nunca me disse, à maneira dos adultos que os contos eram mentiras; sou-lhe especialmente grato por isso; talvez ainda hoje eu os considere verdadeiros. Logo percebi que Robinson Crusoé era diferente de Simbad o Marujo, mas nunca me ocorreu que uma dessas histórias pudesse ser considerada inferior à outra. Sobre o inferno de Dante, aliás, tive pesadelos. Quando ouvi minha mãe lhe dizer: “Jacques, você não deveria ter-lhe dado este, é cedo demais para ele”, receei que ele deixasse de me trazer livros, e aprendi a manter meus sonhos em segredo. Creio também – mas não posso ter certeza –, que minha mãe estabeleceu uma relação entre minhas freqüentes conversas com as figuras do papel de parede e os livros. Foi a época em que eu tive menos afeto por minha mãe. Fui suficientemente esperto para farejar o perigo, e talvez não tivesse abandonado tão pronta e fingidamente as minhas conversas com as figuras do papel de parede, se os livros e as conversas com meu pai sobre eles não se tivessem tornado a coisa mais importante do mundo, para mim.

Mas ele, de modo algum, se deixou influenciar, e após Dante tentou Guilherme Tell. Foi nessa ocasião que, pela primeira vez, ouvi a palavra “liberdade”. Ele fez algum comentário a respeito, que esqueci. Mas acrescentou que a razão pela qual havíamos vindo para a Inglaterra era porque aqui seríamos livres. Eu sabia o quanto ele amava a Inglaterra, enquanto o coração de minha mãe estava em Viena. Meu pai se esforçava por aperfeiçoar seu inglês, e uma vez por semana uma professora vinha lhe dar aulas em casa. Eu notava que suas frases em inglês lhe saíam diferentes das frases em alemão, a língua que lhe era fluente desde a juventude e que ele costumava falar com minha mãe. Ouvia-o dizer e repetir frases soltas. Ele as pronunciava devagar, como se fossem algo belo que lhe causava prazer e que ele repetia várias vezes. Conosco, as crianças, ele agora só falava inglês; o ladino, que até então fora a minha língua, ficou relegado a segundo plano e eu só o ouvia de outras pessoas, especialmente parentes mais idosos.

Os comentários sobre os livros que eu lia, ele só queria ouvi-los em inglês. Creio que, com essa leitura apaixonada, meu progresso foi muito rápido. Ficava contente quando eu fazia meu relatório com fluência. Mas o que ele dizia tinha importância especial, pois ele o ponderava para não errar, falava quase como se estivesse recitando. Tenho na lembrança aquelas horas como algo solene, diferente de quando ele brincava conosco no quarto das crianças, sempre inventando novas brincadeiras.

O último livro que ele me entregou pessoalmente foi sobre Napoleão. Escrito do ponto de vista inglês. Napoleão aparecia como o tirano malvado que queria dominar todos os países, especialmente a Inglaterra. Era o livro que eu estava lendo quando meu pai morreu. Minha antipatia por Napoleão desde então se manteve inabalável. Eu já havia começado a lhe fazer o relato do livro, mas ainda não estava muito adiantado. Ele o dera logo após o Guilherme Tell e, depois da conversa sobre a liberdade, era uma pequena experiência que ele fazia. Logo que comecei a falar, muito excitado, sobre Napoleão, ele disse: ”É melhor que você espere, ainda é cedo. Primeiro você terá que ler mais. Tudo ficará bem diferente”. Tenho certeza de que Napoleão, então, ainda não era imperador. Talvez fosse uma prova, talvez ele quisesse verificar se eu seria capaz de resistir à magnificência imperial. Terminei de lê-lo após a sua morte, e tornei a lê-lo inúmeras vezes, assim como a todos os livros que ele me deu. Até então eu quase não sentira o efeito do poder. Minha primeira impressão do poder deriva desse livro, e jamais pude ouvir o nome de Napoleão sem ligá-lo à morte súbita de meu pai. De todas as vítimas de Napoleão, para mim a maior e mais terrível foi meu pai".



CANETTI, Elias. Papel de parede e livros. Passeio à margem do Mersey. In. _____. A Língua Absolvida: história de uma juventude. São Paulo: Cia. das Letras, 2005, p. 49-52

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