terça-feira, 12 de outubro de 2010

LEITURA

Graciliano Ramos


Hoje é o dia da leitura. Sendo assim, resolvi publicar esse texto de Graciliano Ramos. Para mim é um dos mais emocionantes que li até hoje.


"Achava-me empoleirado no balcão, abrindo caixas e pacotes, examinando miudezas da prateleira. Meu pai, de bom humor, apontava-me objetos singulares e explicava o préstimo deles.

Demorei a atenção nuns cadernos de capa enfeitada por três faixas verticais, borrões, nódoas cobertas de riscos semelhantes aos dos jornais e livros. Tive a idéia infeliz de abrir um desses folhetos, percorri as páginas amarelas, de papel ordinário. Meu pai tentou avivar-me a curiosidade valorizando com energia as linhas mal impressas, falhadas, antipáticas. Afirmou que as pessoas familiarizadas com elas dispunham de armas terríveis. Isto me pareceu absurdo: os traços insignificantes não tinham feição perigosa de armas. Ouvi os louvores incrédulos.

Aí, meu pai me perguntou se eu não desejava inteirar-me daquelas maravilhas, tornar-me um sujeito sabido como Padre João Inácio e o advogado Bento Américo. Respondi que não. Padre João Inácio me fazia medo, e o advogado Bento Américo, notável na opinião do júri, residia longe da vila e não me interessava. Meu pai insistiu em considerar esses dois homens como padrões e relacionou-os com as cartilhas da prateleira. Largou pela segunda vez a interrogação pérfida. Não me sentia propenso a adivinhar os sinais pretos do papel amarelo?

Foi assim que me exprimiu o Tentador, humanizado, naquela manhã funesta. Em geral, não indagavam se qualquer coisa era do meu agrado: havia obrigações, e tinha de submeter-me. A liberdade que me ofereciam de repente, o direito de opinar, insinuou-me vaga desconfiança. Que estaria para acontecer?

Mas a pergunta risonha levou-me a adotar procedimento oposto à minha tendência. Receei mostrar-me descortês e obtuso, recair na sujeição habitual. Deixei-me persuadir, sem nenhum entusiasmo, esperando que os garranchos do papel me dessem as qualidades necessárias para livrar-me de pequenos deveres e pequenos castigos. Decidi-me.

E a aprendizagem começou ali mesmo, com a indicação de cinco letras já conhecidas de nome, as que a moça, anos antes, na escola rural, balbuciava junto ao mestre barbado. Admirei-me. Esquisito aparecerem, logo no princípio do caderno, sílabas, pronunciadas em lugar distante, por pessoa estranha. Não haverá engano? Meu pai asseverou que as letras eram batizadas daquele jeito.

No dia seguinte surgiram outras, depois outras – e iniciou-se a escravidão imposta ardilosamente. Condenaram-me à tarefa odiosa, e como não me era possível realizá-la convenientemente, as horas se dobravam, todo o tempo se consumia nela. Agora eu não tocava nos pacotes de ferragens e miudezas, não me absorvia nas estampas das peças de chita: ficava sentado num caixão, sem pensamento, a carta sobre os joelhos.

Meu pai não tinha vocação para o ensino, mas quis meter-me o alfabeto na cabeça. Resisti, ele teimou – e o resultado foi um desastre. Cedo revelou impaciência e assustou-me. Atirava rápido meia dúzia de letras, ia jogar solo. À tarde pegava um côvado, levava-me para a sala de visitas – e a lição era tempestuosa. Se não visse o côvado, eu ainda poderia dizer qualquer coisa. Vendo-o, calava-me. Um pedaço de madeira, negro, pesado, da largura de quatro dedos.

Minha mãe e minha irmã natural me protegeram: arredaram-me da loja e, na prensa do copiar, forneceram-me as noções indispensáveis. Arrastava-me, desanimado. O folheto se puía e esfarelava, embebia-se de suor, e eu o esfregava para abreviar o extermínio.

Isso de nada servia. Chegava outro folheto – e as linhas gordas e safadas, os três borrões verticais, davam-me engulhos. Que fazer? A lembrança do Côvado me arregalava os olhos. Mas ia-me pouco a pouco entorpecendo, a cabeça inclinava-se, os braços esmoreciam – e, entre bocejos e cochilos, gemia a cantiga fastidiosa que Mocinha sussurrava junto a mim. Queria agitar-me e despertar. O sono era forte, enjoo enorme tapava-me os ouvidos, prendia a fala. E as coisas em redor mergulhavam na escuridão, as ideias se imobilizavam. De fato eu compreendia, ronceiro, as histórias de Trancoso. Eram fáceis. O que me obrigavam a decorar parecia-me insensato.

Enfim consegui familiarizar-me com as letras quase todas. Aí me exibiram outras vinte e cinco, diferentes das primeiras e com os mesmos nomes delas. Atordoamento, preguiça, desespero, vontade de acabar-me. Veio o terceiro alfabeto, veio o quarto, e a confusão se estabeleceu, um horror de quiproquós. Quatro sinais com uma só denominação. Se me habituassem às maiúsculas, deixando as minúsculas para mais tarde, talvez não me embrutecesse. Jogaram-me simultaneamente maldades grandes e pequenas, impressas e manuscritas. Um inferno. Resignei-me – e venci as malvadas. Duas porém, se defenderam: as miseráveis dentais que ainda hoje me causam dissabores quando escrevo.

Sozinho não me embaraçava, mas na presença de meu pai emudecia. Ele endureceu algumas semanas, antes de concluir que não valia a pena tentar esclarecer-me. Uma vez por dia o grito severo me chamava à lição. Levantava-me, com um baque por dentro, dirigia-me à sala gelado. E emburrava: a língua fugia dos dentes, engrolava ruídos confusos. Livrara-me do aperto crismando as consoantes difíceis: o T era um boi, o D uma peruinha. Meu pai rira da inovação, mas retomara depressa a exigência e a gravidade. Impossível contentá-lo. E o côvado me batia nas mãos. Ao avizinhar-me dos pontos perigosos, tinha o coração desarranjado num desmaio, a garganta seca, a vista escura, e no burburinho que me enchia os ouvidos a reclamação áspera avultava. Se as duas letras estivessem juntas, o martírio se reduziria, pois, libertando-me da primeira, a segunda acudia facilmente. Distanciavam-se, com certeza havia colocação um desígnio perverso – e os meus tormentos se duplicavam.

As pobres mãos inchavam, as palmas vermelhas, arroxeadas, os dedos grossos mal se movendo. Latejavam, como se funcionassem relógios dentro delas. Era preciso erguê-las. Finda a tortura, sentava-me num banco da sala de jantar, estirava os braços em cima da mesa, procurando esquecer as palpitações dolorosas. Os sapos cantavam no açude da Penha; o descaroçador rangia no Cavalo-Morto; D. Conceição, além do beco, se esganiçava chamando as filhas. Estavam ali perto, no alpendre e no corredor, brincando com minhas irmãs, e eu não as enxergava. Os meus olhos molhados percebiam a custo o portão do quintal. As mãos descansavam na tábua, imóveis. Julgo que estive meio louco. E amparei-me ansioso às figurinhas de sonho que me atenuavam a solidão. O mundo feito caixa de brinquedos, os homens reduzidos ao tamanho de um polegar de criança.

Muitas infelicidades me haviam perseguido. Mas vinham de chofre, dissipavam-se. Às vezes se multiplicavam. Depois, longos períodos de repouso. Em momentos de otimismo supus que estivessem definitivamente acabadas.

Agora não alcançava esse engano. As três manchas verticais, úmidas de lágrimas, estiravam-se junto à mão doída, as letras renitentes iriam afligir-me dia e noite, sempre. As réstias que passeavam no tijolo e subiam a parede marcavam a aproximação do suplício. Dentro de algumas horas, de alguns minutos a cena terrível se reproduziria: berros, cólera imensa a envolver-me, aniquilar-me, destruir os últimos vestígios de consciência, e o pedaço de madeira a martelar a carne machucada.

Afinal meu pai desesperou de instruir-me, revelou tristeza por haver gerado um maluco e deixou-me. Respirei, meti-me na soletração, guiado por Mocinha. E as duas letras amansaram. Gaguejei sílabas um mês. No fim da carta elas se reuniam, formavam sentenças graves, arrevesadas, que atordoavam. Certamente meu pai usara um horrível embuste naquela maldita manhã, inculcando-me a excelência do papel impresso. Eu não lia direito, mas, arfando penosamente, conseguia mastigar os conceitos sisudos: “ A preguiça é chave da pobreza – Quem não houve conselhos raras vezes acerta – Fala pouco e bem: ter-te-ão por alguém.”

Esse Terteão para mim era um homem, e não pude saber que fazia ele na página final da carta. As outras folhas se desprendiam, restavam-me as linhas em negrita, resumo da ciência anunciada por meu pai.

- Mocinha, quem é Terteão?

Mocinha estranhou a pergunta. Não havia pensado que Terteão fosse homem. Talvez fosse. “ Fala pouco e bem: ter-te-ão por alguém”.

- Mocinha, que quer dizer isso?

Mocinha confessou honestamente que não conhecia Terteão. E eu fiquei triste, remoendo a promessa de meu pai, aguardando novas decepções".


RAMOS, Graciliano. Leitura. In: Infância. São Paulo: Record, 1982, p. 104-109.

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